
Há muitos ideais ao longo da História que começaram com o cristianismo, mas que foram contrafeitos neste último século por doutrinas ideológicas de grupos que deles se apropriaram e deturparam, usando-os para os seus próprios interesses e autopromoção. Foram vários os artigos neste site em que alertei para essa questão, mostrando o equilíbrio dessas mesmas matérias quando próprias à civilização judaico-cristã, e os extremismos que surgiram a partir do momento em que interesses políticos acabaram por acomodá-los aos seus programas, desfraldando-os em bandeiras e slogans partidários. Tem sido assim com o respeito pela obra da criação, ao qual dão hoje o nome de ecologia[1]; com a dignidade da mulher propugnada nos nossos dias pelo feminismo[2]; com as artes e as letras inspiradas por interesses contestatários, ditos “de intervenção”[3]; também as ciências sociais acabaram assumidas pelo marxismo cultural que permeou a docência e tenta contaminar a discência, formando novos prosélitos para um futuro maioritariamente maoista que mais tarde ou mais cedo vícia ou encerra urnas e assume novas formas de totalitarismo.[4] A própria linguagem acaba por ser transformada, não vá lembrar o catolicismo, e assim a caridade torna-se filantropia e solidariedade social, tal como o politicamente correto troca-nos termos como “aborto”, eufemizando-o por “interrupção voluntária da gravidez”; da mesma forma acabaram ressemantizados o livre arbítrio no novo e libertino conceito de liberdade; o amor ao próximo perdeu-se na máxima da fraternidade; e a igualdade terminou rubra de igualitarismos…[5]
A ‘embombada’ declaração dos direitos humanos dos tempos da Revolução Francesa ficou terrivelmente ensombrada pelo período do terror, e embora hoje custe sempre relacionar a guilhotina aos conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, ela foi o instrumento assassino que impôs um novo regime sem liberdade, cortou as cabeças da desigualdade e lançou a divisão num povo irmão anulando a fraternidade. O sociólogo francês Alain Touraine explica que, hoje, ainda se possui certo complexo quanto aos aspetos negativos da história, pretendendo-se reinventá-la[6]: “A França tem tido reticências ao falar dos aspetos sombrios da sua existência. Ela adora reconstruir a sua história. Prefere associar a Revolução Francesa mais à Declaração dos Direitos Humanos do que ao Terror”.[7] Não há dúvida que a famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada no séc. XVIII, reciclada mais tarde pela ONU na sua Declaração Universal, tem como fundamentos basilares a lei natural,[8] desenvolvida sobretudo na Idade Média pela Igreja Católica, e sem a qual seria talvez impossível chegar a um dos documentos mais traduzidos e difundidos pelo mundo, depois da Bíblia. Afinal, “estes direitos fundamentais não foram criados pelo legislador, mas estão inscritos na própria natureza da pessoa humana”.[9] Não é porque a Revolução Francesa redigiu ou a ONU reescreveu que eles existem ou deixam de estar subjacentes ao homem. Estamos a viver com resquícios de uma ética e de uma moral que estão na origem da sociedade ocidental,[10] e enquanto eles existirem, vão sustentando esta humanidade presa a um fio de linha que segura velhos valores religiosos, de solidariedade, família, pessoa e dignidade humanas, que vão sendo atacados e vilipendiados à medida que as novas ideologias, dessorando educações, condicionam as novas gerações.
O sociólogo e filósofo político francês Raymond Aron lembrava que aos direitos dos cidadãos correspondem deveres, cabendo ao Estado promover a felicidade dos cidadãos, mas sem ilibá-los das suas responsabilidades.[11] Hoje, as políticas sociais contestatárias reivindicam direitos e impõem tão somente deveres fiscais. Pagamos para ser livres, alimentando e enriquecendo uma porção de governantes que entretêm o povo com o pão da demagogia e o circo da libertinagem. Desde que paguemos, nada de imoral é negado, pois não se deve contrariar o hedonismo e a satisfação pessoais, ainda que isso empobreça a humanidade em qualidade, número e género. Os direitos fundamentais e os deveres religiosos e sociais foram transtornados e reduzidos aos Direitos Humanos que olvidam as obrigações da pessoa para subverter criminosos, sejam eles de que índole forem, em produtos inocentes da sociedade de consumo. O direito à posse sem o respeito à propriedade. O direito à inocência sem o dever da justiça. O direito a abortar sem o dever de acolher uma nova vida ou o direito egoísta onde não entra o dever da alteridade. O direito ao corpo sem o dever de conservá-lo, ou o direito a morrer sem o dever de preservar a vida. O direito à liberdade sem o dever da responsabilidade, o direito a arrecadar sem o dever de ajudar, o direito, sempre o direito, que acaba de uma forma ou de outra, invariavelmente torto.
É preciso uma mente livre e um espírito profético para fazer frente a esta onda avassaladora e arrasadora, que como uma moda passageira, mais do que nunca arrasa tudo e todos, deixando atrás de si um rasto de destruição civilizacional. Sombras sinistras, opacas e distorcidas ensombram a civilização cristã (foto).
P. José Victorino de Andrade
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[1] Quanto aos desequilíbrios na presente ideologia ecológica, ver: https://aportesdaigreja.com/2018/08/10/o-equilibro-ecologico-perde-se-no-extremismo-ideologico/ e também https://aportesdaigreja.com/2018/11/17/os-animais-do-mundo-e-o-mundo-dos-animais/
[2] Quanto ao feminismo, ver neste site: https://aportesdaigreja.com/2019/03/13/nem-machismo-nem-feminismo-humanismo-integral/ também numa exaltação da maternidade de Maria contrapondo a certa mentalidade feminista em: https://aportesdaigreja.com/2018/12/31/maria-e-a-maternidade-o-feminismo-e-a-irracionalidade/
[3] Quanto ao marxismo cultural nas suas múltiplas formas e no ensino, ver: https://aportesdaigreja.com/2018/11/23/a-fraudulenta-evolucao-que-esconde-uma-revolucao/ de modo especial nas artes e na estética em: https://aportesdaigreja.com/2019/03/22/a-cultura-da-vulgaridade-e-da-feiura-uma-desconstrucao-estetica-para-mudar-a-etica/ Ver também a influência de Gramsci para tal, até mesmo na teologia, em: https://aportesdaigreja.com/2019/01/20/a-introducao-da-utopia-marxista-em-certas-teologias-politicas/
[4] Sobre o totalitarismo, ver os seguintes artigos: https://aportesdaigreja.com/tag/totalitarismo/
[5] Sobre a Revolução Francesa e os princípios de Liberdade, Fraternidade e Igualdade, ver: https://aportesdaigreja.com/2018/03/08/a-guilhotina-que-quis-separar-a-igreja-dos-corpos-politico-social-historico-e-filosofico/
[6] Sobre reescrever a História, ver: https://aportesdaigreja.com/2018/06/02/reescrever-a-historia-para-inculcar-ideologias/
[7] “La France a toujours eu de la réticence à parler des aspects noirs de son existence. Elle adore reconstruire son histoire. On préfère identifier la Révolution française à la Déclaration des droits de l’homme plutôt qu’à la Terreur” (Renaut, Alain & Touraine, Alain. Un débat sur la laïcité. Paris: Stock., 2005. p. 20-21. Tradução minha).
[8] Sobre a lei natural ver: Ver os artigos: https://aportesdaigreja.com/2019/04/13/o-abandono-da-lei-natural-e-as-suas-consequencias-para-a-igreja-e-o-mundo/ e também https://aportesdaigreja.com/2017/06/29/a-corrupcao-da-lei/
[9] “Questi diritti fondamentali non vengono creati dal legislatore, ma sono inscritti nella natura stessa della persona umana” (Bento XVI. Lettera al Presidente del Senato Marcello Pera in Occasione del Convegno di Norcia «Libertà e Laicità». 15 out. 2005.).
[10] Cf. WOODS JR. Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009.
[11] Cf. Aron, Raymond. Estudos políticos. Trad. Sérgio Bath; Apr. José Guilherme Merchior. 2a. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
Olá Pe. Jose… Quando nos dispomos a falar sobre determinadas situações ideologicas, ficamos sozinhos e vivemos sutis perceguiçoes… Vivi períodos estudantis bastantes conturbadores por causa disso. Certa vez ouvi uma indireta a dizer “vc pode ser religiosa mas não fanática”… Na verdade não estava sendo fanática, mas discordando de determinadas ideias que a mim estavam sendo impostas… O mesmo posso dizer dos ambientes de trabalho… Nestes procuro superar em Deus.
Leio seus artigos e sei que estão a me ajudar… Sou da área da veterinária e pouco estudei sobre filosofia, antropologia, teologias… No entanto, devido a um tempo difícil fui mais atenta ao Deus Trino e muito fiel na leitura da Sagrada Escritura… Aos poucos a própria coerência da biblia como contexto de tempo e como palavra libertadoras para os entraves que vivia, percebi o quanto estava desestruturada uma sociedade e não somente minha pessoa no particular… Continuo, da maneira que consigo, tentando ajudar ao meu redor a enfrentar algumas ideologias… Mas me permito ser mais branda sobre o assunto do que lidar com afrontas… Existe uma linha tênua sobre a ideologia que pode acabar prejudicando muita gente inocente e isso eu não quero… Prefiro a reflexão permeada ao senso critico… Por esta via consigo um pouco de inspiração e sabedoria para lidar nestes contextos.
Grata sou por tanto ter me ajudado…
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” a própria linguagem acaba por ser transformada…”afirma o Padre neste seu artigo e a mh associação livre de ideias e ideais deixou-me a pairar entre um livro excelente no qual este tema é mt bem abordado e desenvolvido: A Globalização da Revolução Cultural no Ocidente, de Marguerite A. Peeters e o clássico “1984” de George Orwell, livro que ainda hoje dá muito que pensar, neste caso concreto,com a contraditória “Novalingua” imposta pelo Partido para renomear as coisas, com o propósito de dominar com maior facilidade as instituições e o próprio mundo, manipulando a realidade e impondo o virtual. Numa palavra, colonizando as consciências como hoje se faz recorrendo a expressões em jeito de modernices mas que são muito perversas e traiçoeiras.
Para além de “uma mente livre e um espírito profético”, é necessário o discernimento, a informação, a formação e uma vontade férrea de não se querer deixar manipular por todas estas nuances sedutoras.
Penso que é esta a intenção dos seus textos e acrescento que também será a função dum Sacerdote cuja obrigação é não deixar que se perca nenhum dos que lhe foram confiados, certo?
É um dever seu e é também um direito que lhe assiste, por isso ninguém se pode ou deve queixar. Estamos ou não numa Democracia???
Estado laico não é estado laicista e muito menos perseguidor e impositor do seu ateísmo demolidor…
Em dia de Santo Inácio de Loyola os meus parabéns pelos seus preciosos e elucidativos artigos.
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