Discernimento, uma atitude tão útil quanto necessária, repetidas várias vezes pelo Santo Padre, o Papa Francisco. Diante das novas transformações sociais e globais, que nos querem fazer crer serem normais, é tempo de parar, analisar, pensar e discernir se estamos num processo arbitrário ou planeado, e que metas têm os agentes de tamanhas mudanças. A escrita deve ser clara nesse sentido, até como o Senhor nos pediu: “seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal” (Mt 5, 37), e é exatamente este último proceder que notamos nas entrelinhas de uma revolução cultural e social que deve ser lida a partir de apelos num passado recente a uma nova ordem mundial, preconizada e pensada por filósofos como Gramsci, Althusser, Marcuse ou Bloch (Marxismo e Neo-Marxismo) Sartre e Camus (Niilismo), Lévi-Strauss (Estruturalismo), Jeremy Bentham e John Stuart Mill (Utilitarismo), teorias radicais que entre outros ideólogos e ideologias que aqui não caberia enumerar, atingiram os campos da filosofia política, da sociologia, da ética, e assim, as nossas casas, as nossas famílias, as nossas escolas, o nosso ser. A própria religião não ficou imune.[1] É, portanto, um conjunto de novas ideias que permeiam todos os campos numa espécie de leviatã ideológico, que invade e destrói tudo o que encontra de bom, belo e verdadeiro. E não há dúvida que a atuação conjunta forma esse monstro colossal formado por conluios que lembram a parábola do mau administrador, que se distinguia não pela inabilidade, mas pela maldade, que levou Jesus a rotular os filhos das trevas como mais espertos (e aglutinadores) do que os filhos da luz para as coisas deste mundo (Lc 16, 1-8). Orai, e vigiai… (Mt 26, 41). É dever do batizado e responsabilidade nossa sermos profetas que denunciam as estruturas de pecado e os erros ocultos nas novas ideologias e pseudodireitos que minam a dignidade e a conceção de pessoa humana, promovem uma cultura de morte, além de comprometer as liberdades individuais e religiosas.
Na história recente tivemos guerras e regimes totalitários que visaram impor as suas ideologias pela força, guerrilha, poder de conquista e domínio tirânico sobre os povos. Hannah Arendt, uma vítima e analista das duras realidades do Séc. XX, foi uma das mais insignes críticas destes totalitarismos capazes de erradicar a liberdade política e instaurar o terror, despojando a comunidade da sua humanidade. Segundo ela, as vítimas destes regimes foram anuladas ao “serem privadas da sua identidade, comunidade e status legal” e “reduzidas ao anonimato através da compreensiva erradicação dos seus direitos humanos e do senso de pessoa, através de meios de propaganda e uso arbitrário de poder político e legal”.[2] Mas a mesma filósofa política deu-se conta de uma mudança de estratégia, não tão exposta e aparente, mas subtil e discreta, ao afirmar que agora “os eventos políticos, sociais e económicos por toda a parte estão numa silenciosa conspiração com instrumentos totalitários que visam tornar o homem supérfluo”.[3] Revoluções como o Maio de 68 visaram transpor as novas conceções filosóficas do papel para a sociedade, através do protesto público e do recurso à violência. A revolução contestatária como meio de transformações sociais serviu-se de bandeiras sindicais, ecológicas, feministas, pacifistas, identitárias e sexuais para aliciar e fazer novos prosélitos entre os jovens que passaram a atores ideológicos da globalização.[4] Para lidar e mover as massas, visavam-se sobretudo as paixões e não as razões, e embora os princípios partissem de ideólogos, eles concentraram-se em atingir as multidões através dos corações.[5] Mesmo assim, provocando reações fortes e oposições enérgicas, e alguns traumas que perduram até aos nossos dias e que suscitaram as mais variadas atitudes reacionárias e até mesmo populistas. Era preciso uma nova estratégia. Os falcões precisavam dar lugar aos pombos. Surgiu então um processo mais lento e eficaz, oculto, que Arendt começou a discernir ao escrever sobre uma “silenciosa conspiração com instrumentos totalitários”…
Gramsci talvez seja um dos maiores responsáveis por tornar as guerrilhas em cartilhas políticas que já não visam pela força das balas mudanças estruturais e a implantação de ideologias, mas mirar as velhas e pesadas instituições e largar nelas as novas e destrutivas bombas filosóficas, políticas e sociais. Era preciso transformar guerrilheiros e guerreiros em políticos, e jovens universitários folgados e contestatários em hegemónicas máquinas de pensar, “idiotas úteis” para Gramsci, que permitissem a revolução através de uma nova classe proletária transformada em pensadores, artistas, políticos, intelectuais e até mesmo autoridades morais que invertessem a ordem social até então vigente. Era necessário para tal sufocar qualquer forma de aristocracia, as velhas classes dominantes, e a horizontalização hierárquica através de um programa igualitário, gerido em nome da justiça social e distributiva, encarregar-se-ia, através de pesadas taxas para o investimento privado, e consequente controle de ricos e poderosos, eliminar as diferenças e controlar as finanças para colocá-las em ordem à Revolução. Mas para as mudanças sociais serem profundas, era preciso atuar no campo cultural, de modo a comutar a antiga cultura por outra, mais prosaica e igualitária, que pudesse influenciar o modo como as pessoas vivem, pensam e sentem.[6] Os discípulos de Gramsci estudariam bem a lição e viriam e estender estes processos a outros campos, a todos os campos. O escritor Júlio Verne, entre uma imaginação tão fértil quanto profética, tinha imaginado na sua obra O Doutor Ox o emprego de um gás que, espalhado por uma cidade, fosse capaz de influenciar toda uma população no seu temperamento e modo de agir. Gramsci e os seus discípulos encontraram na cultura a arma sedutora e inebriante que induziria os povos à realização dos velhos sonhos das utopias materialistas radicais.
O desaparecimento de velhas autoridades intelectuais e religiosas, substituídas por demagogos e tecnocratas (do grego tekhne destreza, habilidade + kratos governo), levaria ao poder não os líderes natos e naturais, mas habilidosos demagogos, que assessorados por certa psicologia sociológica das massas, permitiu à Revolução profundas mudanças no próprio contexto democrático.[7] Para a obtenção de tais intentos, a doutrinação tornava-se fundamental, numa verdadeira lavagem cerebral encapsulada em atraentes ideais capazes de cativar jovens sedentos de mudanças sociais, e que resultaram nos enormes esforços por angariar prosélitos e aproveitar as ilusões de estudantes Universitários que, fruto de uma ascensão rápida das classes mais desfavorecidas, levassem do círculo académico para o tecido social as novas ideias de um proletariado transformado e intelectualizado. Foi assim que de modo paralelo a Marx mas numa mesma direção materialista e secularista, Durkheim queria que as mudanças sociais, a começar pelo contexto educativo, parecessem menos uma revolução e mais uma evolução. Esta, seria capaz de alcançar objetivos que uma revolução como a Francesa, com os seus altos e baixos, não logrou alcançar.[8] Onde as revoluções e contestações haviam falhado, uma silenciosa, progressiva e efetiva transformação das mentalidades ocupar-se-ia das novas gerações, aproveitando-se da educação, dos mass media e da cultura em geral para a inversão moral e social. Um processo auxiliado pela economia, pela literatura e pela cultura, uno e universal, capaz de se aproveitar da Internet ou mesmo de organizações como a ONU para a globalização desta nova ordem mundial.[9] Não se trata de mais uma teoria da conspiração. Este artigo possui uma bibliografia nada populista e incontestável. Bastaria procurar-se qualquer um dos filósofos ou autores citados. Como lembra Jesus: “não há nada escondido que não venha a descobrir-se, nem há nada oculto que não venha à luz. Se alguém tem ouvidos para ouvir, oiça” (Mc 4, 22-23).
Parece que os erros que seriam espalhados pelo mundo, conforme a mensagem de Fátima, iluminam-se com novas perspetivas profeticamente reveladas àquelas crianças que, como recetores da mensagem Divina, não tinham os elementos históricos nem capacidade ou maturidade para analisá-los à luz daquilo que vivemos hoje. As ideologias radicais e extremistas mais do que bombas e balas, espalham erros, tal como a profecia advertia. Agora cada um dos leitores tem elementos para discernir alguns dos processos hodiernos, mas para onde vão e o que pretendem, não só não caberia neste artigo, como tirar-lhe-ia a capacidade de discernimento e a liberdade para descobrir e estudar por si mesmo cada um dos autores citados. Munidos das Escrituras, como ensinava Paulo VI, cabe-nos agora analisar os sinais dos tempos…
P. José Victorino de Andrade
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[1] Ao citar Bloch, por exemplo, não podemos esquecer a enorme influência que exerceu sobre o teólogo protestante Moltmann, ou Gustavo Gutiérrez entre outros partidários e heresiarcas da Teologia da Libertação.
[2] “Totalitarianism creates victims who are eliminated from the state by being deprived of identity, community, and legal status. The victims of totalitarianism are rendered anonymous through the comprehensive eradication of their human rights and sense of personhood by means of propaganda and the arbitrary use of legal and political power. Against these victims, the totalitarian state organizes the masses around myths of common national identity and the willing submission to a single authority” In: HANNAH ARENDT. Apud SHELDON, Garrett Ward (ed.). Encyclopedia of Political Thought. New York: Facts On File, 2001. p. 18
[3] Hannah Arendt: “Political, social, and economic events everywhere are in a silent conspiracy with totalitarian instruments devised for making men superfluous.” “On the Nature of Totalitarianism,” p. 459 APUD VILLA, Dana Richard ed. Cambridge Companion to Hannah Arendt. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
[4] Um estudo muito interessante onde se identificam as causas que visam a globalização e onde encontrei a expressão relativamente às mulheres como atrizes ideológicas da globalização no feminismo, aqui adaptada: “Les femmes : actrices idéologiques de la globalisation”. HORS Bernard; SELIM, Monique. Anthropologie politique de la globalisation. Paris: L’Harmattan, 2010.
[5] Cf. BALL, Terence; BELLAMY, Richard. The Cambridge History of Twentieth-Century Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
[6] Cf. GRAMSCI. In: SHELDON, Garrett Ward (ed.). Encyclopedia of Political Thought. New York: Facts On File, 2001.
[7] Cf. BALL; BELLAMY, Op. cit.
[8] Cf. GIDDENS, Anthony. Politics, sociology and social theory: Encounters with Classical Social Thought. California: Stanford University Press, 1995. p. 84-85.
[9] Cf. LEE, Kelley; BUSE, Kent; FUSTUKIAN, Suzanne. Health policy in a globalizing world. Cambridge: Cambridge Univerity Press, 2002.
VINDE ESPÍRITO SANTO. ESPIRITO DA VERDADE-ESPÍRITO DA PAZ E DO BEM—VINDE.
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