São três as espécies de leis segundo São Tomás de Aquino (S. Th. I-II, q. 90 a. 96.).
- Lei eterna, que é um ato da razão e da vontade de Deus, anterior à criação. Dirige todas as ações das criaturas. Ela é imutável, suprema em relação a todas as outras leis, e universal.
- Lei natural, que existe conforme atesta a razão, a consciência e a experiência. Ela é universal e imutável, e apela a um projeto universal de Deus que chama todos à bem-aventurança, se forem fiéis à lei do seu íntimo. São Paulo chega mesmo a citar a Lex Naturalis na sua epístola aos Romanos (2, 14-16), a lei escrita no coração do homem pelo seu Criador.[1]
- Lei positiva, que é um preceito racional para o bem comum; pode ser divina ou humana, conforme seja promulgada por Deus (ex.: Decálogo), ou pelo homem, embora este o faça em virtude da autoridade recebida de Deus (ex.: as leis justas, possíveis e promulgadas, aquelas presentes no código penal, civil, leis de trânsito, etc.).
Entretanto, esta mesma especificação e diferenciação das leis feita pelo Doutor Angélico, não as torna estanques. Conforme o Catecismo da Igreja Católica: “As expressões da lei moral variam muito, e todas se acham coordenadas entre si: a lei eterna, fonte, em Deus, de todas as leis; a lei natural, a lei revelada, compreendendo a Lei Antiga e a Nova Lei (ou Lei evangélica); enfim, as leis civis e eclesiásticas” (CEC 1952). Romper com a relação e a hierarquia existente entre as diferentes formas da lei pode trazer consequências graves. Na sua obra The Origins of Totalitarism, Hannah Arendt considerou acuradamente que o cambalear dos Direitos Humanos (por ocasião dos maiores e mais recentes e sangrentos totalitarismos da História) deveu-se sobretudo a ter-se colocado em dúvida a lei natural. O homem como medida das leis, não mais sujeitas à imutabilidade filosófica ou religiosa, levou, segundo ela, a contingências e manipulações interesseiras de homens, nações ou correntes ideológicas.[2] No seu mais recente artigo, o Papa Emérito Bento XVI alerta de forma igualmente premente e ainda mais urgente para o abandono da lei natural, nos últimos 50 anos, pelo próprio poder espiritual, e discerne neste problema uma das causas para tantos desmandos e escândalos recentes.[3] Uma moral que abandona a lei natural, torna-se relativista. De acordo com São Tomás de Aquino, ferida a lei natural, compromete-se a validade de qualquer codificação (S. Th. I-II, q. 95, a. 2, c.). Sem ela, as leis nos mais diversos níveis ficam sujeitas a ideologias, interesses privados ou arbítrios de poder.
A lei natural está escrita no coração de cada pessoa, uma “gramática transcendente” posta no homem pelo seu Divino Criador.[4] Esta deve orientar todo o homem ao amor a Deus, e à reta consciência, proibindo a conduta contrária à reta razão.[5] Existe um conjunto de leis na ordem natural das coisas, e não é pelo fato de serem promulgadas ou suprimidas pelo poder público que deixam de ser subjacentes ao homem. Por exemplo, existem leis que garantem ao homem o direito à vida ou à sua integridade física e moral, e que protegem a família, mas estas leis não vêm do Estado, são pré e suprapolíticas. Não é por causa de uma lei elaborada pelos homens que nós temos o direito a viver, à propriedade ou à honra… Faz parte do direito natural, porque pertence à natureza das coisas, tal como foram criadas por Deus. Cabe ao poder temporal promulgar legislação complementar a fim de garantir o bem-comum das pessoas através do reconhecimento e defesa dos direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública.[6] Entretanto, o poder temporal tem de reconhecer a incapacidade para elaborar um sistema de normas morais rompendo com aquela mesma ética cujos princípios e direitos edificaram as presentes democracias e determinar uma legislação em descontinuidade com uma filosofia moral que pertence ao património de toda a humanidade. Não pode simplesmente descurar a lei posta por Deus no coração dos homens, alcançável pela razão, acessível a todos. Mas porque ela é passível de ser negada ou instrumentalizada, precisa de uma guardiã.
Ora, a Igreja cumpria profeticamente com essa missão. Propunha uma ética que transcende os homens, os tempos e os lugares, capaz de ajudar na ordem social e que formou o Ocidente. A lei natural sempre foi uma ferramenta capaz de dialogar com todos os homens, crentes ou não, homens de ciências, filósofos… resultando como fruto a possibilidade de oferecer ao “legislador um material precioso para o viver pessoal e social”, pois a lex naturalis possui um valor inalienável “para um real e coerente progresso da vida pessoal e da ordem social”.[7] A Igreja sempre defendeu a lei natural e não pode abandoná-la. Faz parte da sua doutrina e da tradição que, de acordo com Dalla Torre, formou aquele ethos do qual, historicamente, foram beber a maior parte das ordenações jurídicas ocidentais.[8] Para o jurista Miguel Reale “certas regras jurídicas não têm outra justificação senão a decorrente de regras morais, as quais, por sua vez, se apoiam em ‘certa concepção religiosa do mundo’”.[9] “É oportuno recordar que todo o ordenamento jurídico tem a sua legitimidade radicada na lei natural, na mensagem ética escrita no próprio ser humano. A lei natural é, definitivamente, o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica. […] A lei inscrita na nossa natureza é a verdadeira garantia dada a qualquer um para poder viver livre e respeitado na própria dignidade”.[10] Se a Igreja não voltar a uma Teologia Moral radicada e desenvolvida a partir da Lei Eterna e da Lei Natural, Ela ficará sujeita aos ventos de uma ética da moda, tão frágil quanto volátil. Ela tem de inspirar e purificar as leis dos homens, não contemporizar com as leis corruptas, iníquas e contranatura.[11] Como dizia profeticamente Santa Jacinta Marto, a partir das coisas que gostava de pensar e que conversava com Nossa Senhora, “a Igreja não tem modas. Nosso Senhor é sempre o Mesmo!”.
P. José Victorino de Andrade
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[1] Conforme São Paulo: “quando há gentios que, não tendo a Lei, praticam, por inclinação natural, o que está na Lei, embora não tenham a Lei, para si próprios são lei. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência tal como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou defendam”(Rm 2, 14-15).
[2] Ver a segunda parte da obra The Origins of Totalitarism de Arendt (1962): The Decline of the Nation-State and the End of the Rights of Man. Na 17ª edição ocupa as p. 267 a 304.
[3] “Até o Concílio Vaticano II, a teologia moral católica era em grande parte baseada na lei natural, enquanto as Sagradas Escrituras eram citadas apenas para obter contexto ou justificação. Na luta do Concílio por uma nova compreensão do Apocalipse, a opção pela lei natural foi amplamente abandonada, e uma teologia moral baseada inteiramente na Bíblia foi exigida” […] Consequentemente, nada poderia ser considerado um bem absoluto, assim como, por outro lado, coisa alguma poderia ser considerada fundamentalmente ruim; (Poderia haver) apenas juízos de valor relativos. Não havia mais o bom em seu sentido mais absoluto, apenas o aquilo que era relativamente melhor ou contingente para o momento e as circunstâncias específicas”. Ver https://aportesdaigreja.com/2019/04/12/o-tal-texto-do-papa-emerito-criticado-pela-imprensa/
[4] Cf. Messaggio del Santo Padre Benedetto XVI per la Giornata della Pace 2007: La persona umana, cuore della pace. Cf. OR 146 (44.429 – 13.12.2006) p. 4-5. A este respeito, convido também a ler o discurso de 2008 na integra, sobretudo a parte relativa à “Famiglia, comunità umana e legge morale”. AAS 100 (2008) n. 1. p. 43-44.
[5] Cf. S. Th. I-II, q. 91 a. 2, sed contra.
[6] “Civilis legis munus est in tuto ponere commune hominum bonum per agnitionem et defensionem iurium fundamentalium, atque pacis et publicae morum honestatis promotionem”. In: CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI. Instructio de observantia erga vitam humanam nascentem deque procreationis dignitate tuenda. AAS 80 (1988) 98. A mesma ideia encontra-se na Declaração Dignitatis humanae, n. 7.
[7] “[…] che possono offrire anche al legislatore un materiale prezioso per il vivere personale e sociale”. “[…] valore inalienabile che la lex naturalis possiede per un reale e coerente progresso della vita personale e dell’ordine sociale.” (BENTO XVI. Ad Congressum Internationalem de «Lege morali naturali», quem promovit Pontificia Studiorum Universitas Lateranensis,12 Febraarii 2007. In: AAS 99 (2007) I. p. 245-246. Tradução minha).
[8] D’AGOSTINO, Francesco; DALLA TORRE, Giuseppe; CARLO, Cardia. Laicità Cristiana. Cinisello Balsamo (It): San Paolo Edizioni, 2007.
[9] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[10] Conforme Bento XVI “È opportuno ricordare che ogni ordinamento giuridico, a livello sia interno che internazionale, trae ultimamente la sua legittimità dal radicamento nella legge naturale, nel messaggio etico iscritto nello stesso essere umano. La legge naturale è, in definitiva, il solo valido baluardo contro l’arbitrio del potere o gli inganni della manipolazione ideologica”. […] La legge iscritta nella nostra natura è la vera garanzia offerta ad ognuno per poter vivere libero e rispettato nella propria dignità” (AAS 99 [2007], p. 244-245. Tradução minha).
[11] Ver https://aportesdaigreja.com/2017/06/29/a-corrupcao-da-lei/