Porque me abandonaste?

Cruz TomarApós o nosso Salvador confiar a Mãe ao Apóstolo João, e na pessoa do discípulo amado, entregar toda a humanidade a Maria, ouvimo-Lo de novo, próximo à hora nona, pela quarta vez, num total de “Sete Palavras” ou frases, pronunciadas desde o momento em que perversos cravos trespassaram as suas adoráveis mãos e pés. Elevado, do alto patíbulo da cruz, com voz forte, clamou Jesus: “Eli, Eli, lemá sabactháni?, isto é: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Este brado é recordado por dois Evangelistas, Mateus (27, 46) em hebraico, e Marcos (15, 34) em aramaico (Eloí, Eloí…). Não se trata de um grito de desespero, nem tão pouco de uma incoerência, como se o Filho de Deus constatasse a ausência do Pai, mas de uma oração. Jesus reza o Salmo 22, que transmite a experiência do sofrimento. Além de padecimentos físicos atrozes, Ele experimentou também a peculiar dor que atormenta até aos nossos dias os filhos de Adão, a noite escura da vida espiritual, tão patente nas trevas exteriores que cobriam a terra conforme lembra o Evangelista Mateus ao situar as palavras de Jesus (Mt 27, 45). Nenhum outro mártir, santo ou cristão poderá alguma vez reclamar ter sofrido na sua vida mais do que o Salvador, por causa do sentimento de abandono ou da provação. O Senhor quis beber o cálice da dor por inteiro, pois sabia cumprir de tal modo a vontade do Pai (Lc 22, 42).

S. João Evangelista, presente aos pés da cruz, omite esse clamor, talvez pelo risco de não ser compreendido num tempo em que os gnósticos causavam com as suas doutrinas graves danos à Igreja nascente, substituindo a frase por estas palavras: “Jesus, sabendo que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura…” (Jo 19, 28). Indica-nos assim a consumação e a realização de tudo quanto estava escrito, conforme o próprio Ressuscitado confiaria aos discípulos de Emaús: “‘Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?’ E começando por Moisés e seguindo por todos os profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito” (Lc 24 26-27). Se em Jesus tudo é ordenado, não havendo um movimento, gesto ou palavra imperfeitos, então, Ele mesmo ilumina e dá sentido a tudo quanto é relatado nas Escrituras. Sintetizando a explicação da frase “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” que tanta tinta fez correr e certa polémica acontecer, o Senhor, através desse clamor, realizado com voz forte para que não fiquem quaisquer dúvidas, cumpre as profecias, reza com o salmista e opera a Redenção.

Para resgatar esta humanidade perdida, o Senhor sofreu a sua Paixão Redentora, sujeitando-Se à dor e ao abandono, na maior prova de amor jamais dada. Não é possível a nenhum outro sofrer tanto quanto o nosso Salvador. Hoje, a sua entrega de amor estimula-nos também a não abandonar os pobres e os sofredores, mas a ser sinais da presença de Deus junto aos mais necessitados. As palavras de Jesus pronunciadas do alto da cruz, testemunham o seu amor, pois Ele amou-nos até ao fim (Jo 13, 1). Por fim, provoca-nos a partilhar deste amor, a amar-nos uns aos outros como Ele nos amou (Jo 15, 12), certos de que aquilo que fizermos a cada um dos pequeninos, a Ele o fizemos (Mt 25, 37-40). Termino, como faço regularmente em muitas homílias ou no programa da Canção Nova Histórias para pensar e rezar, com uma estorinha. Espero, através dela, proporcionar uma salutar provocação, e partindo de tudo quanto foi escrito neste artigo, conduzir a uma conclusão.

Certa vez, uma senhora resolveu levar os seus filhos ao cinema. Para tal, levou na carteira o dinheiro suficiente para os bilhetes e um pequeno lanche, a fim de passar um agradável fim de tarde com os seus petizes. Sentada ao volante de um confortável automóvel, parou junto a um semáforo. Ao alcance da sua vista, sentado à beira da estrada, viu um homem de certa idade, ou talvez com a pele curtida pelo sol. Maltrapilho, meditativo, inerte, movimentava tão somente os gretados lábios numa espécie de sussurro que ninguém, exceto Deus, poderia ouvir. Fechando o vidro entreaberto do carro, a mulher certificou-se da necessária distância de toda e qualquer indigência, quando ouviu no íntimo uma voz que lhe falava claramente: “Dá-lhe o dinheiro!”. Como??! Não!!! – Pensava ela. Discutia interiormente, colocava obstáculos, argumentava com aquele íntimo desconhecido, um teimoso manso que lhe repetia à consciência sem discutir: “Dá-lhe o dinheiro!”. Perante os olhos atónitos das crianças, a mãe pára o carro mais adiante, abre a porta, tira o dinheiro da bolsa, e dá tudo o que tinha, que nem era muito, depositando notas e moedas nas mãos daquele senhor. Este, elevando os olhos lacrimejantes, tanto para a ela quanto para os céus, pronuncia semelhantes palavras que ficam muito aquém das que lhe iam pelo coração: “Sabe, hoje é o meu aniversário, e eu tinha pedido a Deus um sinal do seu amor. Agora, eu estou certo de que Ele me ama verdadeiramente e de que Ele nunca nos abandona…”.

“Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um dos pequeninos, foi a mim que o deixaste de fazer” (Mt 26, 45). Cada vez que desprezamos cada um daqueles que mais precisam, é ao próprio Senhor que viramos as costas. É, pois, como sinais da presença de Deus no mundo, que não podemos abandonar os pobres, os doentes e os marginalizados. Onde há caridade e amor, Deus aí está. Cumpre, portanto, não deixarmos espaço para o vazio, a sensação de abandono, a tristeza e o desespero. Que nenhuma criatura possa sentir em si o desprezo da nossa inclinação egoística e pecadora, mas como Cristãos, amemo-nos uns aos outros e cuidemos dos mais necessitados. Que diante da possibilidade de fazermos o bem e praticarmos a caridade, a nossa consciência nunca venha a acusar-nos: Porque me abandonaste?

In: Revista Canção Nova. Ano 12, n. 150, mar./abr. 2019. p. 22-25.

P. José Victorino de Andrade

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