Já escrevi neste site um artigo acerca dos enciclopedistas e da sua enorme obra de desconstrução de uma educação e visão das coisas tão ligadas ao sobrenatural e à Igreja, para transformar a Enciclopédia numa verdadeira máquina ideológica do ponto de vista naturalista e das filosofias iluministas.[1] Não abdicavam para tal da mentira, como incentivava Voltaire,[2] pois os fins justificavam os meios, e era preciso “esmagar a infame”[3] (leia-se, a Igreja) conforme popular dito do revolucionário das luzes. Ora, parece que esse esforço antigo permanece ainda hoje, pois ainda é patente um ensino permeado pelo anticlericalismo rançoso e laico, velho resquício deixado pela ideologia ateia que conta já com mais de um século, mas que vai tendo os seus mantenedores. Por exemplo, durante a elaboração da minha tese de doutoramento sobre as relações Estado-Igreja, observei várias vezes que a Wikipédia tinha erros crassos em matéria de apreciação de algumas figuras que marcaram a perseguição anticlerical e as primeiras Repúblicas. Na qualidade de colaborador, que tal plataforma permite, fiz várias correções, sempre apoiadas nos melhores manuais, mas reparava posteriormente que as minhas frases eram apagadas e substituídas por outras de carácter diferente. Na época consegui rastrear os nomes dos indivíduos que faziam tais coisas e todos pertenciam a uma Associação laica e ateia. Pareciam estar eficaz e zelosamente encarregados de manter a falsa pureza dos seus ideólogos intacta, mais ilibada que a dos santos. Lendo também a notícia recente de que certo político pagava a dois ou três intelectuais para defenderem-no, através de múltiplos perfis falsos na internet, actuando nos comentários de notícias que o comprometiam, comecei a perceber que há muita gente dedicada na desconstrução da verdade, a serviço de ideologias, a atuar na Internet e em tudo aquilo que envolve a História.
Há cerca de uma década, a Dra. Esther Mucznick realizou uma pesquisa para a Comissão da Liberdade Religiosa que resultou num precioso relatório que provava, entre outras coisas, estarem os manuais utilizados nas escolas cheios de conteúdos erróneos ou tendenciosos para criticar a Igreja Católica. E sendo a autora do estudo uma judia, não podem acusá-la de parcialidade.[4] Difundem-se e creem-se ainda hoje em grandes falsidades espalhadas nos tempos do anticlericalismo radical, antigas Fake News, para usar uma terminologia recente que expressa uma anciã realidade, visando desde sempre desdourar o antigo e as suas Instituições para valorizar o moderno, que se fosse assim tão bom, talvez não tivesse necessidade de perder tempo em denegrir a realidade histórica que constitui as raízes e a origem daquilo que somos, sobretudo a parte religiosa. Surgem assim as críticas às guerras religiosas, dando ao pensamento moderno a impressão que a religião só traz a guerra e a morte, quando as duas maiores guerras, sobretudo a II Guerra Mundial, que causaram uma mortandade nunca vista na História, foram provocadas e mantidas por regimes ateus.[5] Lembram-se as maldades e terrores da Igreja na Inquisição, sem dizer que a maior parte das vezes quem estava por detrás dos Autos de Fé eram interesses e julgamentos temporais promovidos por alguns daqueles de quem é quase proibido falar mal. Por exemplo, ninguém ousa criticar o Marquês de Pombal, e sem negar algumas decisões acertadas em consequência do terramoto, ele esteve entretanto por detrás das horrorosas torturas e dos cruéis assassinatos de nobres e clérigos, Távoras e Jesuítas. Existem relatos e cartas que passaram para a história, de testemunhas oculares, que revelam nunca se ter visto tamanha crueldade e tão terríveis matanças no Terreiro do Paço. Mas quem recebeu as culpas, foi a Igreja… Santa Joana D’Arc é outra que nos traz logo à lembrança a Inquisição, mas o julgamento dela, comprovado até pelos documentos do processo que ainda existem, foi inteiramente condicionado pelo poder britânico. A prisão civil, as acusações e o processo foi tudo menos religioso. Tanto que ela começou por pedir a que atendessem em confissão e foi negado. Deram-lhe a comunhão antes de morrer, o que estava vedado às bruxas, apesar de a terem queimado enquanto tal. E a Igreja ficou com a culpa… Ou o caso Galileu, famoso, queimado na fogueira da Inquisição por dizer que a terra é que girava em torno do sol, quando qualquer livro ou estudo honesto vai explicar que não aconteceu nada disso, nem ele morreu queimado ou foi sequer torturado. Nem mesmo a Wikipédia… É oportuno até lembrar que quem afirmou que a terra girava em torno do sol foi Nicolau Copérnico, que ele era Cónego da Igreja Católica e dedicado estudioso da filosofia natural, e que exerceu as suas funções religiosas até ao fim da vida sem qualquer espécie de condicionamento ou condenação da parte da Igreja.
Um dos exemplos mais escandalosos dos erros que transmitem consiste na antiga crença dos cristãos numa terra plana. A Igreja medieval seria responsável por ensinar essa inverdade? Colombo, Vasco da Gama ou Fernão de Magalhães teriam desafiado a própria Igreja ao provar pela navegação que esse pensamento arcaico estava errado? Acredita nisto? Então convido-o a pensar por si, e faço-lhe um desafio: Pesquise nas imagens do Google as seguintes palavras mapa mundi medieval e veja os resultados… Surpreendido? Na cartografia antiga a terra está sempre arredondada, até mesmo no desenho de Santo Isidoro que é do século VII. Claro, pode-se sempre alegar que os mapas eram feitos por cartógrafos que não se deixavam enganar pela doutrina da Igreja. Faço-lhe então outro convite, observe várias imagens medievais de Nossa Senhora Rainha com o Menino Jesus ao colo, ou as portas de muitas igrejas e catedrais medievais. Se notar, em muitas delas aparece nas mãos de Deus Pai ou do Filho um globo, representando ser Ele Rei de toda a terra. E também os vitrais. Na arte, o cristianismo sempre representou a terra como redonda (ver exemplos em baixo). O ensino, não era diferente. Os primeiros doutores da Igreja cujos escritos conservamos até aos nossos dias, tais como Santo Agostinho, São Jerónimo, ou Santo Ambrósio, no séc. V, escreviam sobre uma terra esférica. São Tomás de Aquino voltará a lembrar no século XIII de que essa ideia já se encontrava em Aristóteles (e Ptolomeu). Ademais, as crónicas da viagem de Colombo mostram o receio daqueles marinheiros por uma esfericidade da terra maior do que eles esperavam, tornando a viagem maior ou com possibilidades de vento desfavorável, dificultando assim o regresso. Não consta que eles tivessem medo de sair da grande piscina de um oceano num orbe plano e cair no vácuo, ou mesmo no Inferno. Ao lembrar o Inferno, não podemos esquecer a Divina Comédia de Dante (1265-1321) que descreve várias vezes a forma esférica do mundo. O único autor medieval conhecido hoje por ter negado a esfericidade da terra foi o Bizantino Cosmas Indicopleustes, só existindo duas obras dele, mas não consta que fosse conhecido pelos medievais ocidentais. Na verdade, a propagação de uma falsa crença medieval numa terra plana surgiu já no fim do Séc. XIX e início do Séc. XX, pela pena de anticlericais e ateus que fizeram uma leitura tendenciosa e falsa da História, propagada, entretanto, até aos nossos dias, e nas nossas escolas, como tantas outras inverdades.[6]
P. José Victorino de Andrade
_____________________
[1] Ver https://aportesdaigreja.com/2018/03/08/a-guilhotina-que-quis-separar-a-igreja-dos-corpos-politico-social-historico-e-filosofico/
[2] Il faut mentir comme un diable, non pas timidement, non pas pour un temps, mais hardiment et toujours. […] Mentez, mes amis, mentez ; je vous le rendrai dans l’occasion”. (VOLTAIRE. Œuvres completes. Garnier tome 34, djvu/163. Lette 666, anné 1736 – 21 octobre, p. 153. Grifo meu).
[3] “Écrasez l’infâme”. Lettre de Voltaire en Novembre de 1768 au encyclopédiste Jean le Rond d’Alembert apud Lejeune, Anthony. The concise dictionary of foreign quotations. London: Stacey, 1998. p. 111.
[4] Ver o documento presente no site da comunidade israelita de Lisboa: http://www.cilisboa.org/documents/Religiao_nos_manuais_escolares.pdf
[5] Ver BENTLEY HART, David. Atheist Delusion: Revolution and its fashionable enemies. London: Yale University Press, 2009.
[6] Baseio grande parte deste parágrafo no estudo feito pela Reitora de Artes e Ciências Sociais da Simon Fraser University, CORMACK, Lesley. In: NUMBERS L. Ronald (Org). Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião. Lisboa: Gradiva, 2012. p. 44-51. Também em CLA DIAS, João. Oportunidades para a Igreja no século XXI. São Paulo: Univ Italo Brasileira, 2007 (Cap. Relações com a ciência).
Dois argumentos, que além de casarem perfeitamente, muito, muito me agradaram:
(…) visando desde sempre desdourar o antigo e as suas Instituições para valorizar o moderno, que se fosse assim tão bom, talvez não tivesse necessidade de denegrir a realidade Histórica (…) (Pe. José Victorino de Andrade)
(…) A modernidade – associada ao Iluminismo europeu – pôs em questão a
importância de quase tudo o que está associado à palavra religião. O novo
paradigma era a ciência, condição absoluta do progresso social e humano, capaz
por si só de forjar um mundo melhor. De forma dramática, o século XX veio
desmentir esta ilusão e fazer-nos entender que o extraordinário desenvolvimento
da ciência não prescinde de difíceis escolhas morais e que as grandes religiões,
com a sua longa história de reflexão sobre essas questões (…) (Esther Mucznik)
GostarGostar