No século XVIII, com o Iluminismo, inicia-se um processo de decomposição da idade das trevas, tempo dos godos (do gótico), nomes depreciativos, atribuídos à Idade Média. Ao rolar a cabeça dos reis na Revolução Francesa, caía também por terra o absolutismo Monárquico para dar lugar ao absolutismo do Estado. A Revolução Francesa levaria para o campo político aquilo que o protestantismo levara ao religioso: a revolta, não contra o Papa, mas contra o monarca. Para esta nova ordem de coisas era também necessário guilhotinar a influência da Igreja, acusada de “inimiga da autonomia da racionalidade, na medida em que procurava mantê-la enquadrada ou confinada dentro de exigências éticas”.[1] Os corifeus deste pensamento apelavam a uma libertação do homem quanto aos preconceitos religiosos e morais. Para isso, a razão e a liberdade são endeusadas. Chega a erigir-se dentro na Catedral de Notre Dame um monumento pagão à liberdade e presta-se homenagem a uma mulher de má reputação representando a deusa razão.[2]
Tudo precisava ser repensado. Reeducar os homens e reescrever a História. Foi então que os enciclopedistas, Diderot, D’Alambert, Rousseau, Holbach, entre outros, elaboraram um meio didático que não passasse pelo crivo da Igreja, sobretudo a sua visão metafísica e sobrenatural. Uma obra ao serviço da ideologia racionalista e humanista, um acto de fé no progresso das ciências e das técnicas, uma ferramenta pedagógica ou de ensino, igualitária, que pudesse ser uma verdadeira “máquina de guerra” das ideologias das Luzes. Nasce assim a Enciclopédia, esforçada alternativa para o ensino que até então estava maioritariamente nas mãos da Igreja.[3] Era o meio pelo qual os enciclopedistas levavam a cabo a sua revolução social. Eles identificavam-se como deístas, partidários da religião natural e de um Deus único, Universal, mas não definível nem pertencente à esfera de determinada religião. Poucos, como o barão de Holbach, declaravam-se ateus, considerando mesmo que a principal fonte de infelicidade dos homens era a Religião. Mas todos afirmavam a imoralidade do dogma, e revelam-se, em geral, anticlericais.
A forte e tirânica imposição da nova ordem social traria uma guerra civil, o trabalho constante da guilhotina e o genocídio da Vendeia, comprometendo-se as máximas de liberté, fraternité, égalité… O sociólogo francês Alain Touraine adverte que os franceses ainda hoje possuem certo complexo quanto aos aspetos negativos da História, reinventando-a: “A França tem hoje reticências em falar dos aspetos negros da sua existência. Ela adora reconstruir a sua história. Preferimos identificar a Revolução Francesa à Declaração dos Direitos Humanos mais que ao Terror”.[4] Os ideais permaneceram, embora a época do terror tivesse projetado sobre eles sinistras sombras. Para o então cardeal Ratzinger, o iluminismo caracteriza-se por uma ruptura, uma vez que a razão deverá sujeitar a autoridade à crítica, aprovada apenas quando compreendida, caso contrário, rechaçada como válida ou obrigatória, o que traz no bico um programa não só filosófico, como também político, sob a única égide da razão.[5] São João Paulo II, na Centesimus Annus, acabaria por relacionar a influência da doutrina revolucionária com o ateísmo contemporâneo: “Nega-se deste modo a intuição última sobre a verdadeira grandeza do homem, a sua transcendência relativamente ao mundo das coisas, a contradição que percebe no seu coração entre o desejo de uma plenitude de bem e a própria incapacidade de o conseguir e, sobretudo, a necessidade da salvação que daí deriva” (n. 13).
P. José Victorino de Andrade
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[1] BASTOS DE ÁVILA, Fernando. Ética e valores. São Paulo: Loyola, 2001. p. 59.
[2] Várias obras descrevem com pormenores esta cena dantesca, tais como: RENAUD, Escande. Le livre noir de la révolution française. Paris: Du Cerf, 2008; OMER, Jean-Louis. Vérités Révolution française. Paris: Dualpha, 2011.
[3] Quanto à expressão “máquina de guerra” e a alguns pormenores, baseei-me no 4º Capítulo do excelente manual do Instituto Piaget, sob a égide do professor na Universidade Livre de Bruxelas, especialista e membro de vários comités internacionais em Ética e Bioética HOTTOIS, Gilbert. História da filosofia: da renascença à pós-modernidade. Lisboa: Piaget, 2003. p. 116-121.
[4] “La France a toujours eu de la réticence à parler des aspects noirs de son existence. Elle adore reconstruire son histoire. On préfère identifier la Révolution française à la Déclaration des droits de l’homme plutôt qu’à la Terreur”. (Renaut, Alain & Touraine, Alain. Un débat sur la laïcité. Paris: Stock, 2005. p. 20-21. Tradução minha).
[5] Cf. Ratzinger, Joseph. Fé, verdade, tolerância. Lisboa: Uceditora, 2007. p. 210-211.