Joseph Ratzinger delineou os perigos de uma aliciante fusão entre o poder temporal e espiritual no livro Jesus de Nazaré. Ao analisar a terceira tentação do Messias (Mt 4, 8-10), levado ao alto de um monte, diante dos reinos do mundo, e o convite a prostrar-se diante do enganador a fim de ter a posse deles, constata que esta tentação assume formas novas ao longo da História. A fé corre sempre o risco de ser instrumentalizada pelos potentados. Todavia, “o reino de Jesus não pode ser identificado com qualquer estrutura política […]. A fusão entre a fé e o poder político, de fato, tem sempre um preço: a fé coloca-se ao serviço do poder e deve submeter-se aos seus critérios”.[1] Da mesma forma que não cabe ao Estado assumir as religiões para controlar todas as razões e instituições, prometendo uma salvação ideológica e materialista, também não compete à Igreja politizar-se.
Prostrados diante da tentação de salvar o mundo pela opção política ou temporal, muitos teólogos e ideólogos das utopias partiram da real insatisfação e carência dos povos para arremeterem contra as injustiças e a desigualdade através da luta de classes, da reivindicação sindical e da revolta política. Para tal, a filosofia marxista oferecia um aliciador caminho, uma alternativa de verdade e uma nova vida. Adotava-se um novo paradigma para a solução dos problemas que afetam esta terra, a partir de um conúbio entre a filosofia comunista e o Evangelho, o que levou as teologias políticas a afundarem num relativismo sem limites.[2] A Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre alguns aspetos da Teologia da Libertação, Libertatis Nuntius,[3] teve mesmo de chamar a atenção para algumas questões prementes e prejudiciais à Igreja. Royo Mejía elencou os efeitos trágicos desta ideologia para a América Latina, não só pelos problemas que esta corrente teve com a autoridade eclesiástica (e civil), os descuidados com o bem espiritual e a sua secularização, tornando-se mesmo “um modo implacável de esvaziar igrejas”.[4]
Convém não esquecer que certas temáticas trabalhadas pela Teologia da Libertação fazem parte da Teologia Moral – Moral Social –, e a própria Libertatis Nuntius reconhece-o.[5] Parte de alguns princípios justos mas preenche-os ideologicamente, aliando-se a totalitarismos para fortalecer-se politica e socialmente, mesmo sabendo que estes instrumentalizam e manipulam o proletariado, os pobres e as minorias para as suas lutas, condicionando-os intelectualmente, nalguns casos municiando-os de meios letais para a revolução. Pode até partir da atenção evangélica aos pequeninos, mas para aliá-los na edificação de um reino meramente terreno, abdicando mesmo do princípio orientador de qualquer trabalho pastoral: “O primado de Cristo, da vida interior e da santidade”.[6] São João Paulo II acabaria por sugerir, na Centesimus Annus, uma solução simples e orientadora para estas teologias: “a Igreja oferece não só a sua doutrina social e, de um modo geral, o seu ensinamento acerca da pessoa redimida em Cristo, mas também o seu empenhamento concreto no combate da marginalização e do sofrimento” (n. 26).
Pe. José Victorino de Andrade
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[1] “La lotta per la libertà della Chiesa, la lotta perché il regno di Gesù non può essere identificato con alcuna struttura politica, deve essere condotta in tutti i secoli. La fusione tra fede e potere politico, infatti, ha sempre un prezzo: la fede si mette al servizio del potere e deve piegarsi ai suoi criteri”. (BENEDETTO XVI. Gesù di Nazaret. 4. Ed. Milano: Rizzoli, 2007. p. 63. Tradução minha).
[2] Quanto a esta questão, ver o capítulo dedicado à Crise da Teologia da libertação e ao consequente relativismo, presente na obra de RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. Lisboa: UCEDITORA, 2007.
[3] Ver AAS 76 (1984). p. 886-909.
[4] “Por supuesto, la cuestión no es nueva, ya hace años alguien tan inteligente como el Cardenal Ratzinger se dió cuenta que el mayor problema de la Teología de la Liberación no eran tanto los errores teológicos –denunciados por el Dicasterio que el presidía con la Instrucción Libertatis Nuntius– que ponían a sus autores en serios problemas con la Iglesia, con la tradición, con su vocación, con el sentido común y si se descuidaban con la salud de su alma (cuántos se han secularizado o se han hecho políticos colgando los hábitos, o incluso guerrilleros…). No, el gran problema era más bien pastoral: La Teología de la Liberación se convirtió en un modo implacable de vaciar iglesias” (ROYO MEJÍA, Alberto. Los efectos de la Teología de la Liberación en Latinoamérica. 12 nov. 2010. Disponível em: <http://infocatolica.com/?t=opinion&cod=7740>. Último acesso em 16/11/2010.
[5] Para mais pormenores quanto a isto, as temáticas e seu desenvolvimento como campos comuns ao Estado e à Igreja, sobretudo na América Latina, ver: ARBOLEDA MORA, Carlos. Para leer el Compendio de la Doctrina Social de la Iglesia y la Encíclica Deus Caritas Est. In: GIRALDO JARAMILLO, Alberto. ANTONCICH, Ricardo. ARBOLEDA MORA, Carlos. La nueva Doctrina Social de la Iglesia. Medellin: UPB, 2007. p. 19-20.
[6] “Primatum quippe Christi usque reducit in memoriam, primatum pariter interioris vitae ac sanctitatis”. (JOÃO PAULO II. Novo Millennio Ineunte, n. 38. In: AAS 93 (2001). p. 293.)