Nada mais difícil para o homem contemporâneo do que enfrentar as dificuldades e vicissitudes diárias – não só na sua vida em sociedade como na sua realização pessoal –, sem o humilde reconhecimento da sua inclinação para o mal e de uma autoridade moral, Deus. Passa então a agir em todas as coisas de modo imperfeito e insaciável, relegando o seu fim último para uma hipótese desnecessária que o impede de realizar um pretenso céu, já nesta terra. De acordo com a Caritas in Veritate, “quando Deus fica eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural, o fim e o ‘bem’” (n. 18). E se por um lado a ciência e a técnica permitem avanços em campos importantes, por outro todo este progresso requer uma visão transcendente da pessoa e tem necessidade de Deus: “sem Ele, o desenvolvimento ou é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da auto-salvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado” (n. 11). E quando o homem, com a sua inclinação, interesses materiais, possessivos e intempestivos, ou movido por ideologias e extremismos, passa a ter como único impedimento a possibilidade técnica do experimento, ele extrapola os campos do bom senso e da ética para realizar ensaios e transformações que se baseiam tão somente no potencial sucesso. E então, as pretensas soluções tornam-se riscos concretos à ordem das coisas e à própria existência humana. “Os progressos da ciência e da técnica no âmbito da bioética transformam-se em ameaças quando o homem perde o senso dos seus limites e, na prática, pretende ocupar o lugar de Deus”.[1]
Quando o homem considera a sua vida como uma hipótese, um acaso, e não como um dom, ele deixa de considerar a existência e o mundo como algo gratuito e maravilhoso que o deve levar à consciente gratidão e preservação daquilo que lhe foi confiado por Deus. Certa conceção tirânica e aleatória do destino, junto com a contingência da incerteza, levam-no a querer apoderar-se do ser e do seu destino, e a usar todos os recursos a seu bel prazer, pois os meios passam a justificar os seus caprichosos fins. Assim, dentro da tirania das hipóteses, ele prefere a possessão e o domínio, vivendo para o aqui e o agora, o mundo e tudo quanto lhe pertence. Dentro desse mesmo egoísmo, é preciso ajudar o próximo não pelo amor ao necessitado, mas para que ele não cause inconvenientes desagradáveis, não pela caridade, mas pela necessidade. Livre de qualquer condicionamento e moral que o proíbam do que for, os homens fabricam as próprias leis mais permissivas diante do hedonismo e do utilitarismo. E caso o legislador não satisfaça as suas necessidades, o sufrágio procurará levar ao poder aqueles que propugnam uma legislação mais adequada e apetecida à voracidade de fruição: Se é a droga, liberem-na, começando pelas mais leves, se é o sexo livre, criem-se condições para tal, com o aborto e o controle abusivo da natalidade, com leis que facilitem famílias redesenhadas e relacionamentos transitórios, se é a libertinagem individual, com leis que facilitem os próprios caprichos que vão desde a ideologia do género à mudança/transformação do sexo e do corpo humano, e à livre expressão sem educação ou respeito pelos valores, tradições e religiões. De acordo com o Papa Francisco na Laudato Sí “a liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a Igreja, com a sua ação, procura não só lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e ‘sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo’”(n. 79).
Não se pode estranhar, por isso, certo desrespeito pela dignidade humana, uma vez que o conceito passou a estar associado a questões políticas e jurídicas transitórias, ou a comissões de Direitos Humanos dirigidas por tortuosos desumanos. O homem, não mais imagem e semelhança de Deus, dessacralizado, veste-se e despe-se conforme as modas passageiras, cambiante e volátil às ideologias dominantes, ainda que estranhas ou impostas a culturas e histórias tão ricas e diversificadas. Ora, diante da presente crise antropológica, tornou-se necessário e desejável para os nossos dias uma “intuição comum a respeito da dignidade humana”.[2] Faz-se cada vez mais necessário o homem “reapropriar-se da verdade do discurso religioso”.[3] A solução está muito para além da técnica e do próprio indivíduo, tendo que se estruturar solidamente na moral e nos valores eternos – portanto, em Deus, com o qual o homem produz fruto em abundância e sem o qual o homem nada pode (Cf. Jo 15, 5). “Isto significa que os Estados não devem abraçar uma ética qualquer, legislando contra a justiça e o bem do homem, mas é necessário uma ética, na expressão da Caritas in Veritate, ‘amiga da pessoa’ (n. 45). Por isso, devem ser ‘o Amor e a Verdade subsistentes’ a indicar-nos ‘o que é o bem e em que consiste a nossa felicidade’ (n. 52). A Doutrina Social da Igreja tem, neste sentido, ‘um contributo próprio e específico para dar’, uma vez que ela considera o homem ‘à imagem de Deus (Gn 1, 27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor transcendente das normas morais naturais’ (n. 45)”.[4] E neste âmbito, o cristianismo tem um forte aporte a dar.
P. José Victorino de Andrade
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[1] BENTO XVI. Ad Plenarium Coetum Pontificii Consilii pro Familia,13 Maii 2006. In: AAS 98 (2006). p. 451. (Tradução nossa).
[2] Cf. ALZATE RAMÍREZ, Luis Hernando; OSORIO, Byron. Mística y Bioética. Medellín: UPB, 2010. p. 41.
[3] Ibid. p. 38.
[4] VICTORINO DE ANDRADE, José. A proposta da sã laicidade em Bento XVI. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 24, jul-set 2013. p. 31.
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