Não há dúvida que as ciências fizeram progressos surpreendentes no decorrer do século XX e forneceram grandes potencialidades e benefícios para a Humanidade, mas também comportaram graves riscos e erros dificilmente reversíveis. Sobretudo no pensamento humano… Certo inebriamento causado por um progresso, sem limites, nem mesmo éticos ou morais, afastou o homem de pretensas contingências que o tornavam mais humilde e, diante do desconhecido, abrir-se ao sobrenatural e voltar-se para o Céu. Tornando-se a pessoa e o subjetivo um valor absoluto e passando a matéria a responder a todos os anseios humanos, valorizou-se o corpo e negligenciou-se a alma. O físico sobrepôs-se ao espiritual também a nível social, e assim, a sociedade secularizou-se. Já a Gaudium et Spes alertava: “Ao contrário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou a religião, ou prescindir deles já não é um fato individual e insólito: hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como exigência do progresso científico ou de novo tipo de humanismo. Em muitas regiões, tudo isto não é apenas afirmado no meio filosófico, mas invade em larga escala a literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e da história e até as próprias leis civis; o que provoca a desorientação de muitos” (n. 7).
A observação da vida contemporânea levar-nos-á a pertinentes conclusões quanto aos salientes e dominantes aspetos materialistas e, vinculados a eles, extremismos ideológicos. Conceções como a do Super-Homem (Übermensch) de Friedrich Nietzsche, e o infame decreto humano da negação ou morte de Deus, levaram a que “não havendo Deus como medida”, esta passe a ser “o próprio homem, e ninguém quererá considerar-se inferior a qualquer outro. E não havendo Deus como fim, este é o próprio mundo, é o tempo de vida mais ou menos longo de cada um; e quando o indivíduo for suficientemente otimista para não cair no desespero, procurará não ser inferior a qualquer outro, em prazeres e em proventos materiais. […] viram-se apenas a si mesmos como super-homens a quem tudo deveria ser concedido!”[1] E por incrível e mais assustador que pareça, esta tendência penetrou até no Templo Sagrado com consequências nefastas. Na verdade, depois da inflexibilidade ao modernismo do Papa Pio X, esperava-se uma barreira impenetrável no campo eclesiástico a toda esta tendência inebriante e de carácter destruidor, que carregava consigo uma perigosa rutura com instituições e tradições. Mas a fumaça de satanás parece ter entrado… Não seria a isto que se referia Paulo VI na sua polémica e tantas vezes manipulada homilia na Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo em 29 de Junho 1972? Proponho uma releitura desta alocução a partir de três excertos:
- Entrou a dúvida na nossa consciência e entrou pela janela que, pelo contrário, devia estar aberta à luz. Da ciência, que foi feita para dar-nos a verdade que não afasta Deus mas que o faz aproximar-se mais e celebrar com maior intensidade, veio pelo contrário a crítica, veio a dúvida.
- Celebra-se o progresso para poder depois demoli-lo com a revolução mais estranha e mais radical, para negar tudo aquilo que se conquistou, para retornar primitivos após tanto se ter exaltado os progressos do mundo moderno.
- Também na Igreja reina este estado de incerteza. Acreditava-se que depois do Concílio viria um dia de sol para a história da Igreja. Veio, em vez disso, um dia de nuvens, de tempestade, de nevoeiro, de procura, de incerteza. [2]
Não muito distantes dos problemas da sociedade hodierna e sem constituir um exemplo de resiliência a ela, revelam-se alguns dos atuais problemas da Igreja, à luz das declarações de Paulo VI e de certa hermenêutica de rutura* que se seguiu, de forma um pouco infeliz, aos ensinamentos emanados pelo grande acontecimento na Igreja ocorrido no século passado, e que foi o Concílio Vaticano II. Conforme sintetiza Arboleda Mora: “caiu-se num cientismo nas analises teológicas e exegéticas; numa desmitologização do sagrado, numa dessacralização dos ritos e sinais, numa vida mais ‘mundana’ que espiritual nos agentes pastorais e um reconhecimento excessivo da autonomia individual que levou a um alheamento das normas morais”.[3] A Igreja é composta por homens deste mundo, que deviam viver nele sem ser dele, chamados a ser testemunhas, exemplos de vida, mas que passaram pelo torvelinho das profundas mudanças que se deram na nossa sociedade, e deixando-se arrastar pela forte corrente de uma moral relativista, de um progresso inebriante, de uma liberdade individualista e de ideologias de slogans tornam-se ocasião para uma das mais rotineiras acusações contra esta Instituição: o mau exemplo dos seus membros. E é preciso progredir. Senão, neste campo, começamos a regredir…
P. José Victorino de Andrade
Trechos extraídos e adaptados de: VICTORINO DE ANDRADE, José. Aportes da Igreja para um autêntico Progresso. Medellín: UPB (Mestrado em Teologia Moral), 2009.
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[1] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plínio. Catolicismo e política. In: Opera Omnia: Reedição de escritos, pronunciamentos e obras. São Paulo: Retornarei, 2009. p. 308. Vol. III.
[2] PAULO VI. Homília na Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. Quinta-feira, 29 de Junho 1972. Tradução para o português do documento original. [Em linha]. <Disponível em: www.vatican.va>. Traduzido por VICTORINO DE ANDRADE, José para arquivo IFAT-ITTA.
* Cabe aqui salientar a expressão utilizada pelo Emmo. Cardeal Franc Rodé, no “Simpósio sobre vida apostólica religiosa desde o Vaticano II”, no Stonehill College de Boston (EUA), em 2008. Ele é da opinião que, após o Vaticano II, alguns seguiram uma hermenêutica de continuidade, enquanto outros adotaram uma hermenêutica de rutura. Para o Cardeal, os difíceis tempos pós-Conciliares, dever-se-iam sobretudo a este segundo grupo.
[3] “Se cayó en un cientifismo en los análisis teológicos y exegéticos; en una desmitologización de lo sagrado, en una desacralización de los ritos y signos, en una vida más “mundana” que espiritual en los agentes pastorales y en un reconocimiento excesivo de la autonomía individual que llevó a un alejamiento de las normas morales” (ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010. p. 19. Tradução minha).
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