Este teórico político francês, ou “politicólogo”, como gostava de se considerar,[1] escreveu uma série de artigos e de livros comentando a política nos conturbados tempos da 2ª Guerra Mundial, e a reconstrução europeia, que extrapolava a arquitetura das cidades, estendendo-se a novas formas de pensar e viver, e também ao surgimento de novos regimes. Ele não se preocupou em inventar um novo sistema político, mas em pensar ou teorizar os existentes.[2] Adepto da democracia, desde que burilada pela necessidade de liberdade e respeito, foi, todavia, crítico relativamente à democracia liberal pelo seu mundanismo.[3] O politicólogo colocava hierarquicamente a sociologia à frente da política, e indispunha-se quando a teoria sociológica a parecia ignorar.[4] A apresentação a uma das obras de Aron,[5] realizada por José Guilherme Merchior, lembra algumas das principais chaves do pensamento do autor: Franco opositor dos regimes totalitaristas, pela oposição à liberdade, crítico do utilitarismo, pois acreditava que aos direitos dos cidadãos correspondem deveres, devendo o Estado promover a felicidade dos cidadãos, sem ilibá-los, entretanto, das responsabilidades, Aron defendia um governo “constitucional-pluralista”,[6] ou seja, que “reconhece o pluralismo dos grupos sociais, o consagra na sua legislação, e o garante através de seus tribunais”.[7]
Aron não possuía qualquer Credo nem defendia qualquer transcendência, embora não excluísse Deus do seu pensamento e dos seus escritos. Chega mesmo a criticar os falsos deuses do progresso e da história.[8] Não sendo católico, conta com amigos no seio da Igreja, mas também com críticos, que se estendem a vários sectores, sobretudo pelas suas censuras não só ao catolicismo marxista, igualitarista, mas também ao conservadorismo inoperante. A moral é kantiana com alguns traços filosóficos modernos, e a verdade ele a baseia no realismo e não em qualquer outra pré-existente.[9]
Entretanto, o autor crê que as filosofias políticas foram, no passado, inseparáveis de considerações, éticas e metafísicas, e assim deveriam permanecer hoje.[10] Ou seja, não é necessário haver uma rutura relativamente a conceções do passado que permanecem válidas nos nossos dias, entre elas, a ética e a metafísica. E se bem que o autor pense que nem a ciência, nem a teoria política, são passíveis de dar uma resposta às questões colocadas tradicionalmente pela filosofia, esta última é, entretanto, capaz de nos fazer “reconhecer sentidos e valores específicos da política”.[11] Esta reflexão dada pelo teórico político francês num artigo lembra, portanto, que a ética e a metafísica não deverão estar ausentes da ação e da teoria política, pelo contrário, deverão ser parte integrante. Ele aborda ainda um tema de suma importância, algumas vezes esquecido: “A ordem política, com as suas necessidades e os seus valores, não constitui o todo da existência humana”.[12] Não lhe cabe, por exemplo, pensar o porquê desta existência. Entretanto, fechá-la à influência e ao pensamento filosófico, ético e metafísico, não só não preencherá e dará respostas fulcrais aos homens, como reduzi-los-á a uma conceção e ideologia política que passa a querer dominar e totalizar toda a realidade humana, instrumentalizando e comprometendo a liberdade daqueles que vivem sob a direção de uma determinada e determinante classe política. O que torna o homem um escravo ideológico de um pensamento e forma de vida cujo critério está nas mãos de alguns, ou uns, por vezes, pouco ou nada inspirados.
Raymond Aron, comenta as relações temporais e espirituais, e o enorme prejuízo causado por uma separação radical entre o sagrado e o profano, além das realidades seculares que prometem fazer aqui já nesta terra aquilo que pertence ao Reino de Deus, ou seja, uma alternativa secular da divindade que Aron desconfia levar muitos crentes ao ateísmo, pela simpatia cada vez maior a estruturas terrenas que levam ao esquecimento das prerrogativas divinas.[13] Entretanto, a apatia relativa aos problemas sociais em alguns sectores da Igreja, na década de 50, é também criticada por Aron, que afirma viver-se uma realidade na qual as distensões entre os dois polos faziam parte da mesma política cristã que vivia em tensão permanente entre as duas existências. Entretanto, se bem que Aron critique a radical separação do Estado relativamente à Igreja, condena por outro lado uma assimilação do poder público que acabe por deglutir a religião assumindo também o papel absoluto de construção de um Reino perfeito, sem o concurso de Deus. Era o que Aron designava como Religião política, ou religião secular, expressão cuja semântica seria cunhada por ele,[14] contestada por alguns, como Hannah Arendt,[15] mas apenas em certos conteúdos e na terminologia, e não na crítica à fusão de poderes que transforma as autoridades em déspotas totalitaristas carismáticos que passam a ocupar nas almas o lugar antes preenchido pela fé.[16] Não obstante, Aron não os considera propriamente uma religião, mas uma antirreligião.[17]
O escritor e analista Sironneau faz um excelente resumo acerca das posições do teórico, que relaciona a atitude dos devotos políticos com aquela mesma assumida pelos crentes: “entrega total pela causa, crença absoluta na verdade dessa causa, intolerância, fanatismo face a outras causas”.[18] E enumera um conjunto de radicais procedimentos encontrados tanto no socialismo, quanto no nazismo, que se poderiam apresentar como decálogos religiosos, tais como a finalidade quase sagrada das suas doutrinas que lhes dão possibilidade de não olhar os meios para atingir os seus fins, o dogmatismo relativo à interpretação das realidades e do futuro e a exigência de uma entrega total dos homens que lhes exige sacrifícios e uma enorme fé nas suas doutrinas.[19] Cabanel, interpretando e verificando as consequências da doutrina de Aron, vê no fenómeno das religiões políticas ou seculares um inevitável reducionismo da religião, asfixiada por uma crescente laicização, que transfere as prerrogativas religiosas para os totalitarismos, e que resulta na ascensão de um personagem público carismático e numa confusão de fronteiras entre a esfera religiosa e a civil. Secularizadas algumas realidades, e desencantadas as religiões seculares com o fim das ideologias que ruíram juntamente com a queda do muro de Berlim, novas formas religiosas surgem, e associam-se com “o progresso, os direitos do homem, a indústria, a ciência, a escola, o consumo, a revolução, o hedonismo […] doutrinas que propõem, tal como o fazem as religiões, uma explicação global do mundo, uma comunhão com os contemporâneos”.[20]
Não só especialista, comentador e teórico, em matéria política, Aron também ganharia fama no campo da filosofia da história.[21] Na obra introdutória a esta matéria, deixa-nos uma importante interrogação: “A crítica política-moral não se encontrará desorientada sem bússola e sem regra, desde o momento em que ela se associa a cálculos de poder?”.[22] Em seguida, o autor considera a dificuldade da análise imparcial e pergunta mesmo se ela existirá, uma vez que a observação do ponto de vista partidário dificilmente será neutra na apresentação do seu ponto de vista. Entretanto, isso não significa que Aron ache prescindível tanto a verdade, na observação real das coisas, quanto a moral na sociologia, e foi por incómodo e deficiência nestas matérias que ele se tornou um homem público e interventivo.[23]
P. José Victorino de Andrade
Artigo extraído e adaptado co 3° Capítulo da tese de Doutoramento: VICTORINO DE ANDRADE, José. Aportes da Igreja à Construção de uma Sã Laicidade. Medellín: UPB, 2013.
Ver também o artigo sobre as religiões políticas ou as políticas que querem ser salvação e tornar-se uma religião em:
https://aportesdaigreja.com/2018/03/22/quando-a-politica-quis-ser-salvacao-e-tornar-se-uma-religiao/
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[1] ARON, Raymond. Estudos Políticos. Trad. Sérgio Bath; Apres. de José Guilherme Merchior. 2. ed. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1985. p. 17)
[2] DAVIS, Reed M. A Politics of Understanding: The International Thought of Raymond Aron. Louisiana: Louisiana State University Press, 2009; ARON, Raymond. A propos de la théorie politique. In : Revue française de science politique, Vol. 12, n. 1, 1962.
[3] DAVIS, Reed M. A Politics of Understanding. Op. cit.
[4] ARON, Raymond. Estudos Políticos. Op. Cit.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem, p. 18.
[7] Loc. cit.
[8] DAVIS, Reed M. A Politics of Understanding. Op. cit.
[9] ARON, Raymond. Le fanatisme, la prudence et la foi. In : Revue Commentaire, n. 109, printemps 2005. p. 5-19. Artigo da década de 50, republicado em 2005, por ocasião do centenário do seu nascimento.
[10] “Les philosophies politiques ont été, dans le passé, inséparables de telles considérations, éthiques et métaphysiques. Elles ne peuvent pas ne pas lêtre aujourd’hui”. (ARON, Raymond. A propos de la théorie politique. In : Revue française de science politique. Op. cit. p. 5. Tradução minha).
[11] “Ni la science ni la théorie politique ne donnent de réponse catégorique aux questions qu’a traditionnellement posées la philosophie. Mais les questions posées par la philosophie nous aident en tout cas à reconnaître sens et valeurs spécifiques de la politique […]” (Ibidem, p. 13. Tradução minha de excertos).
[12] “L’ordre politique, avec ses nécessités et ses valeurs, ne constitue pas le tout de l’existence humaine” (Ibidem, p. 26. Tradução minha).
[13] ARON, Raymond. Le fanatisme, la prudence et la foi. Op. cit.
[14] Conforme Cabanel (CABANEL, Patrick. Les mots de la laïcité. Toulouse: Presses Univ. du Mirail, 2004). Também Sironneau (SIRONNEAU, Jean-Pierre. Sécularisation et Religions Politiques. Paris: Mouton, 1982), no livro dedicado a esta temática, era da opinião que esta expressão cabe muito provavelmente a Aron, que a teria utilizado pela primeira vez num artigo escrito em 1944, publicado mais tarde, em 1946. (ARON, Raymond. L’âge des empires et l’avenir de la France. Paris : Éditions Défense de la France, 1946).
[15] BAHER, Peter. Hannah Arendt: Totalitarism, and the Social Sciences. California: Stanford University Press, 2010.
[16] ARON, Raymond. L’âge des empires et l’avenir de la France. Op. cit.
[17] Ibidem.
[18] “[…] les mêmes comportements que ceux que l’on trouvait jusqu’ici dans la religion: dévouement total à la cause, croyance absolue à la vérité de cette cause, intolérance, voire fanatisme vis-à-vis des autres causes” (SIRONNEAU. Op. cit. p. 205. Tradução minha)
[19] Ibidem.
[20] “Le progrès, les droits de l’homme, l’industrie, la science, l’école, la consommation, la révolution, l’hédonisme […] doctrines qui proposaient, comme le font les religions, une explication globale du monde, une communion avec ses contemporains” (CABANEL. Op. cit. p. 92. Tradução minha).
[21] ARON, Raymond. Introduction à la philosophie de l’histoire. Paris: Gallimard,1981.
[22] “La critique politico-morale ne se trouve-t-elle pas désorientée, sans boussole et sans règle, dès lors qu’elle s’attache à des calculs de puissance?” (Ibidem, p. 577-578. Tradução minha).
[23] ARON, Raymond. La philosophie de l’histoire et les sciences sociales. Paris: Éditions Rue d’Ulm, 1999.
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