O início do Séc. XX ficou marcado por Repúblicas que quiseram levar adiante um processo de secularização e dessacralização das instituições, por vezes, através do uso incontido da força e da perseguição religiosa. Pensavam que esse seria o meio de obter plenos poderes e domínio sobre os povos, e estavam de tal modo obcecados pela ciência e pelos novos recursos e técnicas que chegaram à arrogante pretensão de tornar o homem todo poderoso, capaz de decidir e dominar a sua vida e o seu destino. Para tal, era necessário destronar Aquele que ocupava a Cátedra, Deus. A industrialização pesada obrigava a estilos de vida diferentes e alterava a densidade populacional empurrando os operários para guetos e subúrbios, enquanto as classes mais altas discutiam política nos clubes e aderiam ao anticlericalismo como se fosse condição para a inteligência e o progresso. Até os suicídios estiveram na moda e parecia sinal de importância decidir sobre a própria vida e ganhar protagonismo pela imolação romântica no amor a ideais e a donzelas.
A salvação já não vinha da Igreja nem de Deus, mas dos vários movimentos filosóficos, científicos e políticos. Ficava um vazio no senso religioso dos povos e imperava preencher todos os espaços para que a religião perdesse a sua influência e presença na sociedade. Entre os modos de efetuá-lo, rápido e supostamente eficaz, contavam com severas leis, o controle religioso e a perseguição. Mas depressa descobriram que a reação fazia florescer uma Igreja ainda mais dinâmica, crédula e até militante. Os mártires tornavam-se heróis, coisa não desejada. Era preciso mudar a estratégia. Para tal a política deveria metamorfosear-se numa espécie de religião civil e contrariar todas as alternativas que pudessem devotar fiéis. Foi então que silenciaram as armas para dispararem impropérios, fazendo recrutas para as militâncias entre os descontentes e os explorados de uma sociedade desigual, aliciando e radicalizando pobres e miseráveis em promessa de um éden terreno. As estratégias de guerra voltaram-se para o marketing e os slogans. As novas políticas tornavam-se então religiões civis, com características em tudo semelhantes às religiosas, e em nada próximas de Deus. O Compêndio da Cambridge para o pensamento político do Séc. XX identificou a “chave” para os totalitarismos dos tempos mais recentes: “habilidade para embaralhar a imaginação popular e para inspirar uma quase religiosa devoção entre os seus seguidores”[1] A religião civil tornou-se uma verdadeira caricatura daquilo que são as religiões, com as seguintes características e analogias:
– Adesão a uma doutrina política com ideais de salvação e de libertação do jugo opressor (soteriologia);
– Escritos e obras de ideólogos políticos de conteúdo irrepreensível (livros sagrados)
– Seguimento de uma liderança política carismática, simbólica e poderosa, sem mancha nem erro (santos);
– Fidelização de massas a um conjunto de dogmas sociais e económicos que passariam a ser verdades impostas, anatematizando e condenando qualquer posição contrária (dogmas e inquisição);
– Formação de ideólogos políticos, para manutenção da pureza dos dogmas partidários e busca de formulações conforme a especificidade do público (teólogos e filósofos);
– Introdução da terminologia e da doutrina nas várias idades, culturas, povos e nações (inculturação);
– Valorização e promoção dos fiéis assassinados e perseguidos por causa daqueles ideais (mártires);
– Vitimização dos frágeis e das minorias existentes (pobres e sofredores);
– Proselitismo e campanha política (evangelização);
– Domínio sobre os meios de massa de modo a doutrinar e influenciar o grande público (Propaganda Fidei);
– Compromisso e obediência aos ideais e aos ideólogos (votos);
– Condenação de atos e práticas contrárias à doutrina (moral);
– Adesão a práticas naturalistas, esotéricas e panteístas (espiritualidade)
– Grande influência em todos os campos, académicos, culturais, literários, artísticos… O que era a Igreja noutros tempos, passaria a ser a ideologia política tendenciosa nos vários meios…
Os novos totalitarismo que tanto criticaram as religiões, tornaram-se eles mesmos uma religião, civil, ateia, sem deuses, mas com gurus e uma “espiritualidade” e doutrina próprias. “Onde a política quer ser redenção, ela promete demasiado. Onde pretende fazer a obra de Deus, não se torna divina, mas demoníaca”[2] Aquilo que os totalitarismos não conseguiram fazer pela força, fazem-no agora subtilmente, penetrando qual fumaça que penetra na fresta, intoxicando aos poucos e com eficácia, inebriando homem e mulheres, jovens e idosos… Júlio Verne já falava na sua obra O Doutor Ox de um gás que era solto e inebriava a população e impelindo-a a determinadas atitudes, da tranquilidade à revolta, do pacifismo a atitudes beligerantes, pelos efeitos do tóxico. Se a religião era o ópio do povo, era preciso inebriá-lo com outras doutrinas e fazê-lo aderir a outros gurus. O totalitarismo sempre foi a meta. As seitas políticas andam por aí a dizer que a salvação é o voto neles. Muito diferentes das democracias desenxabidas que pregam é o direito à diferença e à personalidade, à liberdade de crença e ao direito de viver, à verdadeira liberdade. Por isso, pense, opine e não se deixe intoxicar…
P. José Victorino de Andrade
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[1] “The key to political power lay in the ability to stir the popular imagination and to inspire an almost religious devotion amongst one’s followers” (BALL, Terence; BELLAMY, Richard (2008). The Cambridge History of Twentieth-Century Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 79. Tradução minha)
[2] RATZINGER, Joseph. Fé, verdade, tolerância. Lisboa: Uceditora, 2007, p. 105-106.