A adoração exclusiva a um só Senhor, Deus, é uma disposição virginal daquele que guarda o coração de falsos deuses ou de endeusamentos. É única e exclusivamente ao Deus único, ao Deus zeloso (Ex 20), ao Senhor nosso Deus, que se deve adorar e amar com todo o coração, alma e forças (Dt 6, 4-5; Mt 23, 37), o Shemá Israel (שמע ישראל) (1) que Jesus repete e confirma levando o cristianismo desde os primeiros tempos a perpetuá-lo como programa e estilo de vida. A resposta a este apelo realizou-se coerentemente diante do culto de latria prestado a Imperadores e autoridades: O Deus único excluía líderes humanos deificados, posição que levou os cristãos a testemunharem a sua fé com a própria vida, diante de Césares e subalternos irados. O Kaiser não era e continua a não ser o Kyrios. O cristianismo não só dessacralizou as autoridades desta terra, tirando-lhes a primazia que se devia somente ao Rei dos reis e Senhor dos senhores, diante do qual as autoridades desta terra deverão prestar contas, como fazia tombar por terra os pesados deuses de madeira, bronze e ferro, os mitos e as mitologias, pois a Verdade sobrepunha-se à criatividade e a História da Salvação ao imaginário místico. Os homens já não pensavam o que os deuses falavam, uma vez que o Filho, Jesus Cristo, revelou-Se-nos. Ele veio para nos dizer quem é o Pai e só Ele tem Palavras de Vida Eterna (Jo 6, 68). Abandonam-se os deuses por nós criados ao conhecer-se o Criador que nos criou. Já não precisamos fabricá-los e pensá-los à nossa medida, com mau temperamento, tendências, caprichos, pois a perfeição supera a imperfeição, a presença ofusca a ausência, e a omnipotência a nossa contingência. Os deuses que os homens amaram desapareciam diante de um Deus que nos amou por primeiro, um Deus de amor (1Jo 4, 7-10).
Quando as autoridades quase não encontram oposição, mas cooperação nos seus desejos desmedidos e totalitários, tal como nos seus condicionamentos ideológicos e tirânico controle das instituições, até mesmo as religiosas, arvorando-se em novos deuses, grandes e históricos desastres legam marcas profundas e duradouras para a humanidade. Não foi assim que se globalizaram os maiores entrechoques entre povos e nações e se deu uma mortandade nunca antes vista, como nos grandes conflitos recentes, sobretudo na II Guerra Mundial, promovida por regimes ateus liderados por homens divinizados? Os senhores que querem tomar o lugar do único Senhor, e que não pensam em prestar contas diante da Justiça Divina, julgam-se omnipotentes, capazes de condenar à morte inocentes, de fabricar a sua própria moral, ditando o que está bem e o que está mal. Não são também líderes com esta mentalidade que ameaçam continuamente a paz e a segurança mundial? Enquadram-se assim algumas das mais recentes distensões, rumores e alarmes para esta humanidade, causados tanto por fanatismos e extremismos que usam a religião a seu bel prazer, como por regimes ateus que desafiam ou negam Deus, ou que nacionalizam as igrejas, para condicioná-las às ideologias, havendo até mesmo aqueles que desenterram misticismos, religiões indígenas ou quase extintas, fáceis de manipular e reinventar, para assim servirem os interesses Estatais.
Contrário a tudo isto, está o amor original e originário do Deus revelado em Jesus Cristo, tão bem caracterizado por São Paulo: “o amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor 13, 4-7). “Deus é amor” (1Jo 4, 8), precisará São João Evangelista. Um regime que nega Deus ou que fabrica os seus próprios deuses, renega o amor, provoca temor e por vezes arma o terror. E uma sociedade que se afasta desse amor original e originário, por mais que se sinta segura em regimes democráticos, corre sempre riscos. As massas já provaram que são capazes de se enganar, e regimes apoiados por maiorias foram capazes de desrespeitar e calcar a seus pés povos, tradições e religiões.[2] Tivemos genocídios e leis iniquas, líderes totalitários e déspotas. O sufrágio pode ser parte da solução, não a perfeição. Sem Deus, surgem muitos que querem ser deuses. E o vazio deixado pelo cristianismo, que lhes negava tais prerrogativas, faz com que a sociedade não se torne somente um viveiro desse tipo de criaturas leviatânicas que ambicionam lideranças, mas que a própria população procure os seus deuses, virando-se para a confortabilidade das religiões orientais, com uma moral e uma prática pouco exigente, para misticismos e religiões carismáticas, alicerçadas no sentimento, transformando a prática religiosa em sensação com pouca razão, ou mesmo na crença em amuletos e superstições, adivinhos e astrologias, magias e bruxarias, ocultismo e muito ilusionismo, práticas que voltaram hoje com uma força enorme depois de muitas centenas de anos relegadas ao esquecimento e à vergonha em sociedades progressivamente mais avançadas e civilizadas. Mas sobre este tema, voltarei, talvez num próximo artigo. Afinal, a impureza e falta de castidade no mundo de hoje tem a sua causa nos desamores e traições a Deus, começa nos corações, para só então desdobrar as suas consequências nos corpos e na insaciabilidade humana. Mantenhamos os nossos corações virginais, livres de falsas divindades e divinizações.
P. José Victorino de Andrade
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[1] “Escuta, Israel! O SENHOR é nosso Deus; o SENHOR é único! Amarás o SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração” (Dt 6, 4-6). As citações Bíblicas neste artigo são da BÍBLIA SAGRADA. Lisboa/Fátima: Difusora Bíblica. 6. ed, jun 2015.
[2] Ver algumas destas ideias em RATZINGER, Joseph. Fé, verdade, tolerância. Lisboa: Uceditora, 2007.
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