Deus, na unidade e variedade com que criou todas as coisas, por um ato de bondade, por amor, fez os homens à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26), e deu-lhes o mandato de crescerem e multiplicarem-se (Gn 1, 28), conferindo-lhes assim uma altíssima dignidade e responsabilidade. À semelhança do amor Trinitário, que gera o Filho e faz proceder o Espírito Santo, Deus tornou o amor fecundo. Da amorosa união entre o homem e a mulher, procede um novo ser, multiplicando-se assim o número dos homens sobre a terra. Na unidade do género humano, multiplica-se a variedade dos indivíduos, únicos, no corpo e na alma. Cada homem e cada mulher que nasce é irrepetível, histórica e concretamente. E isso define-os enquanto pessoas. Este termo surgiu no helenismo, onde era comum usarem-se máscaras nos teatros, não só para individualizar e caracterizar cada personagem, mas também para fazer ressoar a voz dos atores pela audiência. É do grego prósopon que se começa a formar a palavra latina persona, ou seja, que soa.[1] Palavra adotada mais tarde não só pela Teologia para referir-se a cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, a unidade dos distintos, Sociedade Divina, relação plena, total, mas também para referir-se à pessoa humana, ou seja, cada um dos diferentes indivíduos que compõem a grande sociedade dos homens. Nela, o homem deve viver em relação e abertura ao próximo à semelhança do relacionamento Trinitário.
Pela altíssima dignidade conferida ao homem enquanto pessoa, ser em relação, jamais seria legítimo reduzi-lo a um meio, uma coisa ou um objeto. Quando perguntamos por uma pessoa, a terminologia própria é: quem; e não: o quê. Quem é aquele homem, aquela pessoa… A sua individualidade e a sua natureza levam a interessarmo-nos pela sua identidade e a relacionarmo-nos com aquele ou aquela e não com aquilo. Relação esta que não pode sujeitar-se a qualquer prazo de validade, pois uma pessoa nunca foi nem será uma coisa, ela será sempre uma pessoa, e devemos considerá-la enquanto tal. Não posso simplesmente usá-la ou descartá-la. Ora, a partir do momento em que se começa a perder o conceito integral de pessoa, com a sua dignidade e transcendência, reduz-se o homem a uma utilidade, descartável quando inútil e inútil quando indesejado. Desvanece-se o dever de preservar a vida e o direito de possui-la. Vida que deve ser respeitada, desde o primeiro momento da sua conceção até à sua morte. Desde o início, porque após a fecundação, o embrião é já um indivíduo. A biologia e a genética explicam tratar-se de um novo ser, com um genoma diferente dos progenitores, pois não se trata de material genético pertencente ao pai ou à mãe, mas da fusão de ambos a partir da qual surge um organismo novo, pertencente à espécie humana, programado geneticamente, irrepetível e com um singularíssimo DNA. Um novo ser, que nunca existiu e que nunca mais se repetirá. Nele, estão já determinadas as características físicas e até mesmo contidas as doenças hereditárias…[2] Não existe então qualquer legitimidade ou coerência para o chavão por vezes escutado: “com o meu corpo, faço o que eu quiser” –, pois ali desenvolve-se aquele que já é um outro, cujas leis deveriam proteger pela sua fragilidade, conforme o direito à vida garantido pelas Constituições da maior parte das nações e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ora, um ser humano é uma pessoa, segundo o que temos visto até aqui. Ele participa da nossa natureza, pertence à nossa espécie, é único e irrepetível, portanto, deve ter o estatuto de pessoa e não de coisa. Não pode haver um momento em que se começa a ser pessoa e outro em que deixamos de sê-lo, senão, justificam-se algumas das maiores atrocidades e crueldades, como o aborto e a eutanásia. Para lá chegar, a satânica argúcia dos filhos das trevas teve de anestesiar o conceito de pessoa e reduzi-la a coisa. É mais fácil extirpar uma coisa do que matar um ser vivo, ou a consciência doer por um homicídio, um crime hediondo, porque visa os mais frágeis e desprotegidos. Cumpre lembrar que a pessoa humana o é, do primeiro ao último instante, não passa a ser ou deixa de o ser a nosso bel-prazer, conforme as conveniências ou mesmo as leis de determinado país. Não é uma lei que me dá ou tira o direito de ser pessoa, mas deveria ser ela a tutelar e proteger a vida. Não está escrito na Magna Carta o direito fundamental à vida, da qual procede tudo o mais? Esquecidos andam os homens das verdades fundamentais…
Pe. José Victorino de Andrade
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[1] Um estudo muito interessante, no qual me baseei, sobre o conceito de pessoa, e o seu desenvolvimento terminológico e histórico, em: CARRODEGUAS NIETO, Celestino. El concepto de persona a la luz del Vaticano II. In: Lumen Veritatis. São Paulo, n. 12.
[2] Algumas ideias esparsas deste parágrafo, sobretudo no que consta à fundamentação genética, encontra-se em LUCAS LUCAS, Ramón. Bioética ao alcance de todos: Temas e problemas. Coimbra: Gráfica de Coimbra 2, 2006.
Padre José Andrade
Inicialmente vossa bencao.
Com enlevo li vosso artigo , de valiosa importância.
Recentemente vi um caso de morte de uma idosa , por indução da própria família . Mais um entre muitos que a sociedade faz que não vê…
A impunidade , hipocrisia e destemor a Deus torna o ser humano um degradado , diante de si e diante de Deus.
Gostaria muito de aprender melhor, para melhor servir.
Peço suas orações.
Votos de Santa Quaresma.
Janel
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