Na antiguidade, era raro o soberano que soubesse fazer a distinção entre a esfera religiosa e a civil. Flávio Josefo, historiador dos judeus, criticava a idolatria prestada aos imperadores, tão comum na época, enquanto o povo eleito adorava um só Deus sem deixar de prestar as devidas honras aos líderes humanos.[1] A famosa perícope de Jesus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), levou a um inevitável choque. Os césares temiam deixar de receber culto e enfraquecer o seu poder. Nas perseguições e martírios os cristãos mostraram que estavam dispostos a dar a sua vida no “respeito absoluto pela lei divina quando entra em conflito com alguma lei humana injusta”,[2] pois o Kaiser não é Kyrios, ou seja, não é nem pode ser Deus e Senhor.
O individualismo das instituições sociais e políticas sofreria forte impacto com a doutrina trazida pelo Salvador. A carta a Diogneto (Séc. II), mostra que os cristãos, não se distinguindo dos demais, sabem que esta não é a pátria definitiva e habitam nela “tão-somente como inquilinos”.[3] Vivem neste mundo como se não pertencessem a ele, mas sem se alienarem. Conforme o remetente anónimo da carta, “alma no corpo, assim são os cristãos no mundo”.[4] Tertuliano, no Apologético, dirigindo-se respeitosamente às autoridades, pede-lhes para não temerem os cristãos, pois estes rezam por elas e não são inimigos. Por isso ele suplica-lhes que a Igreja seja reconhecida e livre. Tomando o Evangelho e os Padres da Igreja, dir-se-ia que a sociedade medieval, sob forte influência eclesiástica, geraria naturalmente um Estado laico, diferente do moderno, mas contingências históricas não permitiram.[5]
Nem sempre as relações Estado/Igreja foram pacíficas, e os atuais modelos, longe da perfeição, já passaram por uma mútua purificação em muitos anos de convivência difícil e dolorosa. As fronteiras da ação peculiar de cada instituição e o comum objeto de ambas nem sempre estiveram claros, e passaram por momentos de confusão ou de hostilidade. As discordâncias estão longe de não terem sido produtivas, uma vez que “na realidade, são divergências e tensões necessárias, criativas e fecundas, porque não debilitam, mas confirmam e revigoram a laicidade do Estado.[6] As históricas querelas relacionais fazem parte da difícil edificação da laicidade. As dificuldades acabaram por ser benfazejas ajudando a criar pontes de diálogo. Dalla Torre defende que para chegar à distinção, e não ao separatismo, será necessário colocar os olhos na História e verificar como o princípio separatista nunca garantiu a verdadeira laicidade do Estado.[7] Para Milot, constitui um processo demorado e complexo, poucas vezes pacífico, capaz de gerar algo que não surgiu por acaso.[8] Os factos e o desenrolar da História mostram-nos, entretanto, que foram os países de fortes raízes cristãs os poucos capazes de criar um Estado laico.
P. José Victorino de Andrade
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[1] JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. 4a. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. p. 730.
[2] “El testimonio de los mártires es el más fuerte argumento de las exigencias que impone en el cristiano el respeto absoluto por la ley divina cuando entra en conflicto con alguna ley humana injusta” (ÁNGEL FUENTES, Miguel. Los principios fundamentales de la teología moral católica. 7a. ed. San Rafael: Verbo Encarnado, 2005. p. 235. Tradução minha).
[3] “Patrias próprias habitant; sed tanquam inquilini” (PG 2, p. 1174. Tradução minha).
[4] “Quod est in corpore anima, hoc sunt in mundo Christiani” (PG 2, p. 1175. Tradução minha).
[5] Ver RHONHEIMER, Martin. Cristianismo y laicidad: historia y actualidad de una realidad compleja. Madrid: Rialp, 2009.
[6] “En realidad, se trata de divergencias y tensiones necesarias, creativas y fecundas, porque no debilitan, sino que confirman y revigorizan la laicidad del Estado” (Idem, p. 24-25. Tradução minha).
[7] D’agostino, Francesco, Dalla Torre, Giuseppe & Carlo, Cardia. Laicità Cristiana. Cinisello Balsamo (It): San Paolo, 2007. p. 34.
[8] Ver Milot, Micheline. La laicité. Ottawa: Novalis – Université Saint-Paul, 2008.
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