Estamos chamados a dar de graça aquilo que recebemos de graça (Mt 10, 8),[1] e desta forma conformar a nossa existência e todas as realidades correspondendo “ao dom oferecido com o dom assumido”.[2] Insertando-se todo o nosso ser numa união com Deus (Sb 13, 3-5; Act 14, 17; Rm 1, 19-20), assumimos um compromisso a colaborar na edificação do Reino dando um testemunho coerente capaz de levar a uma transformação positiva da sociedade.[3] Mas se alguém vive para si mesmo, de modo egoístico, ele aliena-se, não se preocupando com a relação e as necessidades do próximo. Há então uma negação desse princípio de alteridade ao qual o homem deveria ser fiel como ser em relação, “ser-com” presentes tanto no Sein und Zeit de Heidegger como no pensamento ético de Emmanuel Levinas.[4] O individualismo e o egoísmo levam a uma preocupação continua com os próprios interesses, surgindo tudo, até o próximo, como um meio para a satisfação dos caprichos.
Ora, a ética contemporânea levanta uma importante questão radicada no Cristianismo: na relação, o homem nunca poderá consistir um meio para o outro homem, mas deve ser o fim próximo das suas ações.[5] Senão, a pessoa torna-se simples utilidade (utilitarismo), meio justificado pelos fins (Maquiavel) ou até mesmo descartável (Zygmunt Bauman). Como qualquer mortal, também os políticos estão sujeitos ao individualismo e ao egoísmo, seja pela satisfação de objetivos pessoais, ambições desmedidas, escravidão a obstinados programas partidários e a ideologias bitoladas e totalitárias. Para estes, os fins justificam os meios… Anne Baudart, do Instituto de Estudos Políticos em Paris, identificou as consequências deste isolamento, de consequências nefastas e que repercute na sociedade, pois, conforme ela, “o individualismo causa estragos em toda a parte” notando-se assim que “a consciência política se deteriora ao ponto tornar-se uma entidade vazia de conteúdo”. E exemplifica com um efeito amplamente negativo: “os escândalos políticos, o número crescente dos ‘casos’ trazidos à luz por meios de comunicação ávidos de sensações fortes e variáveis, multiplicam-se e constituem a ‘actualidade’”.[6]
De acordo com López de la Osa: “pensar politicamente é pensar em categorias pessoais e apreender, utilizar e desenvolver racionalmente, as estruturas da convivência humana”.[7] Elevando-se o homem à condição de pessoa-em-relação, ele estrutura o seu comportamento numa dinâmica de preocupação e amor pelo próximo, desdobrando-se em atitudes de gratuidade e solidariedade. O homem descobre então a sua vocação ao amor e exerce um verdadeiro ministério, no sentido de fazer-se menos (minus) e colocar-se ao serviço, conforme a própria etimologia latina. Uma dinâmica altruísta, generosa, proporcionando a verdadeira felicidade que “está mais em dar do que em receber” (Act 20, 35). Tanto no amor ao próximo, quanto no exercício ministerial e em tantos domínios, munida das Escrituras e fiel aos ensinamentos do Salvador, os aportes da Igreja às potestades deste mundo poderão ser grandes. Ela é especialista e conta com uma experiência maior que as democracias em questões de humanidade e solidariedade…
P. José Victorino de Andrade
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[1] […] gratis accepistis, gratis date (Mt 10, 8).
[2] HERRÁEZ, Fidel. Opción Fundamental. In: VIDAL, Marciano. Conceptos fundamentales de ética teológica. Madrid: Trotta, 1992. p. 353.
[3] Op. Cit. p. 352-353.
[4] Ver VIEIRA DE MELO, Nélio. A ética da alteridade em Emmanuel Levinas. Porto Alegre (Brasil): EDIPUCRS, 2003. Sobretudo as páginas 79-80.
[5] Ver estudos de ética não utilitaristas ou consequencialistas que defendem esta tese como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética social: familia, profesión y ciudadanía. 2a. ed. Pamplona: Eunsa, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La perspectiva de la moral: fundamentos de la ética filosófica. Madrid: Rialp, 2000. p. 109-115.
[6] BAUDART, Anne. A Filosofia política. Lisboa: Piaget, 2000. p. 111-112.
[7] LÓPEZ DE LA OSA, José R. Politica y moral. In: VIDAL, Marciano. Conceptos fundamentales de ética teológica. Madrid: Trotta, 1992. p. 700.
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