O cristão deve tender a uma cultura que privilegie a vida, uma vez que em Deus está a vida em abundância (Jo 10, 10). Jesus morreu para nos libertar do pecado e da morte (Rm 8, 2) e identificou-se como “Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14, 6). Entretanto, não são apenas motivações de carácter bíblico, teológico ou moralista que levam a Igreja a ser favorável à vida, mas também argumentos racionais, éticos, portanto, filosóficos… Por exemplo, não deveria suicidar-se alguém que fosse acidentalmente para um local desértico, pois teria obrigações relativamente à sua própria pessoa, tais como a procura de alimento, hidratação, descanso, cultivo do intelecto e da memória, criatividade na procura do alerta e do resgate, por mais remotas que fossem as possibilidades de salvamento. E não são raros os casos de pessoas salvas em semelhantes condições.
Assim, a morte como fuga ao sofrimento, sobretudo no suicídio, pode ser analisada de um prisma tanto individual como social, e a razão favorece elementos para tal reflexão que gostaria de partilhar, inspirando-me em autores clássicos (Aristóteles, Platão) e outros mais recentes que abordaram questões éticas (Gilson, Maritain, Jolivet, Collin…).
– Do ponto de vista individual:
1. Atenta contra um princípio fundamental dos Direitos Humanos, em que o respeito pela vida não pode excluir a própria vida;
2. Vai contra um dos instintos mais básicos da nossa natureza: o de sobrevivência. O Homem procura em todas as circunstâncias preservar a vida, sendo capaz até de feitos extraordinários para conservá-la.
3. A opção pela morte é uma recusa a aceitar que a vida é feita de dificuldades e sofrimentos, alguns deles até grandes, mas que não se resolvem ou justificam com a aniquilação do próprio ser;
4. É também o abandono a algo fundamental na vida de todos: a esperança, e já diz o velho adágio, essa deve ser sempre “a última a morrer”;
5. Devemos estimar-nos, e o suicídio é o abandono de uma justa autoestima;
6. Poder-se-ia ainda considerar a derrota, ou mesmo a deserção, no momento em que o sofredor abandona a grande batalha da vida, preferindo a morte, trocando-se o positivo pelo negativo, a coragem pela covardia, conforme exemplo dado por Platão na sua Apologia de Sócrates.
– Do ponto de vista social, uma vez que vivemos em sociedade:
1. Mau exemplo, perante os demais membros da sociedade, provocado por alguém que desistiu de viver;
2. Sofrimento causado, sobretudo em amigos e familiares. É um egoísmo pensar apenas em si, e não no desgosto e tristeza dos demais;
3. Abandona-se a sociedade e a participação nela, família, trabalho, colaboração e amizade, ideias originais e uma personalidade ímpar. A individualidade estética e intelectual é abruptamente privada de interagir com os demais.
4. Causa prejuízos aos que permanecem, a todos os níveis, não só financeiros, o que seria secundário, mas também morais, pessoais, entre muitos outros.
5. Acarreta consigo aquela peculiar sensação de culpa, o peso de consciência, seja naqueles que não lograram evitar o trágico desfecho, mas sobretudo nos cúmplices, que com a morte precoce colaboraram formal ou materialmente.
Pensemos num corredor que evitou obstáculos e saiu da pista… outros permanecem na corrida, saltam barreiras, caem e levantam-se. Que impressão ficará nos espectadores. Ficarão edificados com os que abandonaram a pista, ou com aqueles que não desistem? Quem receberá a medalha? São Paulo (Fl 3, 14) usa uma metáfora semelhante, para justificar o prémio daqueles que se esforçaram por alcançar a meta. Ele mesmo considerou ter chegado ao fim da corrida, “combatendo o bom combate” (2 Tm 4, 7) e merecendo a coroa de glória (2 Tm 4, 8).
A vida é um dom gratuito. Quem escolheu existir? É algo que foi dado (por Deus), transmitido (pelos pais). Se recebemos esse tesouro extraordinário, sem pedir, porque haveremos de descartá-lo? Não escolhemos viver, porque haveremos de escolher morrer? Na sapiencial fidelidade de Job diante das provações, é o Senhor quem nos dá, é ele que nos tira, por isso, bendito seja Ele (1, 21).
Pe. José Victorino de Andrade
In: Gaudium Press (adaptado)
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