Uma das características do ser humano é a criatividade. A nossa capacidade de partir de limitadas formulações e possibilidades que estão ao nosso dispor desdobrando-as em combinações e resultados múltiplos levados quase ao infinito. O homem é capaz de elaborar com um número limitado de ingredientes um sem número de receitas gastronómicas; formular de uma gramática e léxico limitados uma combinação infinita de enunciados; de um número limitado de materiais e cores criar continuamente novidades artísticas; de um conjunto de notas musicais compor novas melodias. Herdamos, entre tantas coisas, a gastronomia, a língua, a cultura e a arte que não se encerram em si, mas que possuem constante dinamismo. Fomos agraciados com dons e capacidades intelectuais que outros seres vivos não possuem, uma vez condicionados e limitados aos seus próprios instintos e natureza.
Se bem que participamos da capacidade criadora de Deus, na transformação da matéria que ele nos confiou, só Ele pode criar do nada. Somos criativos, não o Criador. Nem podemos ceder à velha tentação de ser como Deus (Gn 3, 5) ou à mais recente de O destronar (Nietzsche). No mundo atual, a autoridade repugna a quem proibiu proibir.[1] Mas tal como a nutrição precisa de um nutricionista, a língua da linguística, a arte e a música da crítica, uma vez que não são resultado do caos e da irrisão, mas passíveis de ser ensinados e sujeitos a normas e a padrões pré-estabelecidos, o homem também não deve submeter a capacidade técnica e científica apenas ao campo do factível. Ele precisa de uma autoridade moral que advirta dos riscos e dos limites. A capacidade humana desprovida de condicionamentos pode transformar-se numa ambição desmesurada, excêntrica, a partir do momento em que se coloca a liberdade e a capacidade criativa apenas no campo das possibilidades sem qualquer autoridade que a regule. Aqui, como em todos os domínios, é imprescindível a existência de um agente moralizador.
É neste campo que surge a ética, e de modo específico a bioética. Prescindir de uma autoridade moral e reguladora independente de interesses materiais ou ideológicos leva a criatividade e a capacidade técnica e científica a experiências que poderão ser perigosas e potencialmente destrutivas, ferindo o meio ambiente, a dignidade humana e até a sua pacífica coexistência. “Os progresso da ciência e da técnica no âmbito da bioética transformam-se em ameaças quando o homem perde o senso dos seus limites e, na prática, pretende ocupar o lugar de Deus”.[2] A ciência e a técnica não podem estar apenas sujeitas a critérios de factibilidade, do tipo: é possível, então faça-se – reduzindo-se o ser humano a “objeto de experimentação” e abandonando-o “ao arbítrio do mais forte” pois, “confiar cegamente na técnica como única garantia de progresso, sem oferecer ao mesmo tempo um código ético que afinque as suas raízes naquela mesma realidade estudada e desenvolvida, equivaleria a fazer violência à natureza humana com consequências devastadoras para todos”.[3] A Igreja possui uma voz profética, livre, comprometida com o bem integral do homem todo e de todos os homens, perita em humanidade e caridade, para se opor a tudo o que fere a criação e a criatura, e para isso contribui no campo da ética, e de modo especial da Bioética.
Pe. José Victorino de Andrade
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[1] Slogan da Revolução estudantil do Maio de 68 e que reflete o pensamento de Sartre, Lévi-Strauss, Althusser, Lacan entre outros ideólogos da desconstrução filosófica social e moral.
[2] BENTO XVI. Ad Plenarium Coetum Pontificii Consilii pro Familia,13 Maii 2006. In: AAS 98 (2006). p. 451. Tradução minha.
[3] BENTO XVI. Ad Congressum Internationalem de «Lege morali naturali», quem promovit Pontificia Studiorum Universitas Lateranensis,12 Febraarii 2007. In: AAS 99 (2007) I. p. 245. Tradução minha.
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