No século XIX, encontramos uma semelhança muito grande entre os termos “laicismo” e “laicidade”, com poucas diferenças semânticas, significando ambos o fosso que se abria entre a Igreja e o Estado, separando-os totalmente, além de um início de privatização do fenômeno religioso, ou pelo menos impedimento de que a sua influência atingisse a esfera pública.1 Entretanto, esta visualização mudaria ao longo dos tempos, e as contingências históricas fizeram com que se começasse a separar os dois termos, procurando que o seu significado pudesse ilustrar realidades diversas.
A partir de Pio XI, na Quas primas (1925), “a palavra laicidade começa a perder o seu sentido agressivo e cria-se o termo laicismo para expressar uma posição política antirreligiosa”.2 Para chegarmos a Pio XII e à aceitação da laicidade como legítima e sadia, não podemos negar que houve um processo. Segundo Bento XVI, “para compreender o autêntico significado da laicidade e explicar os significados hodiernos, é necessário levar em consideração o desenvolvimento histórico que o conceito teve” (Insegnamenti, II, 2, [2007], p. 789).3 A separação dos termos foi entrando progressivamente no mundo acadêmico e na sociedade. Conforme Rhonheimer a concepção de um laicismo de contornos negativos não é exclusiva, mas própria à Igreja.4
Por exemplo, o sociólogo francês Alain Touraine, em debate com o professor de filosofia da Universidade de Paris-IV, Alain Renaut, alerta: “É necessário dizer e repetir […] que o ‘laicismo’ está em contradição com a laicidade, os direitos do homem e a liberdade”.5 Também a canadense Micheline Milot distingue os termos e precisa o que se entende por laicismo: Este, “conota especificamente a militância que pode ser empregada por grupos na sociedade ou por um Estado que pretende lutar contra os poderes das tradições religiosas na vida social ou política”.6 E acrescenta os meios para tal intento: a separação conflituosa, a transformação de ideologias em dogmas até de caráter religioso, e a associação destas ideologias a militâncias que visam acabar com os símbolos religiosos no espaço público.
Nos conturbados anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, Pio XII faria um apelo relativamente às relações entre o Estado e a Igreja: unidos numa mesma sociedade, deveriam ver os homens como um campo comum e edificar uma ordenação cristã das coisas, inspirada por Aquele que é o Príncipe da Paz. Abertas as portas à ação da Igreja e à troca de bons ofícios, habitaria entre os homens a genuína liberdade e a paz, não imperando o aspecto naturalista e mecanicista, mas tornando os homens capazes daquela liberdade moral e ordenação que não existe onde prevalece um monopólio exclusivista e excludente. Maturando uma forma de poder propício e aberto, Pio XII formulou uma nova expressão, em 1958: a “sã laicidade do Estado”. A expressão seria reiteradamente usada. A semente tinha sido plantada. Caberia crescer e frutificar.
Pe. José Victorino de Andrade
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1 RHONHEIMER, Martin. Cristianismo y Laicidad. Historia y actualidad de una realidad compleja. Madrid: Rialp, 2009.
2 “En 1925 la palabra laicidad comienza a perder su sentido agresivo y se crea el término laicismo para expresar una posición política antirreligiosa”. ARBOLEDA MORA, Carlos. La Religión en Colombia. Medellín: UPB. 2010, p. 152. (Tradução minha).
3. “Per comprendere l’autentico significato della laicità e spiegarne le odierne accezioni, occorre tener conto dello sviluppo storico che il concetto ha avuto”. (Tradução minha).
4 RHONHEIMER, Martin. Loc. cit.
5 “Il faut dire et répéter […] que le ‘laïcisme’ est en contradiction avec la laïcité, les droits de l’homme et la liberté” RENAUT, Alain; TOURAINE, Alain (2005). Un débat sur la laïcité. Paris: Stock, 2005. p. 67. (Tradução minha).
6 “Connote spécifiquement le militantisme qui peut être déployé par des groupes dans la société ou par un État qui entend lutter contre les pouvoirs des traditions religieuses sur la vie sociale ou politique”. MILOT, Micheline. La laicité. Ottawa: Novalis – Université Saint-Paul, 2008. p. 11. (Tradução minha).
7 “Vi è, in Italia, chi si agita, perché teme che il cristianesimo tolga a Cesare quel che è di Cesare. Come se dare a Cesare quello che gli appartiene, non fosse un comando di Gesù; come se la legittima sana laicità dello Stato non fosse uno dei principi della dottrina cattolica; come se non fosse tradizione della Chiesa il continuo sforzo per tenere distinti, ma pure, sempre secondo i retti principi, uniti i due Poteri. PIO XII. Oriundis e Picena Provincia, Romae degentibus, 23 mar. 1958. (AAS 50 [1958], p. 220. Grifo meu).
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