Quando o Império Romano do Ocidente ameaçava ruir com o avanço dos povos Bárbaros e sob o peso da imoralidade, falsas acusações foram dirigidas aos cristãos, supostamente por enfraquecerem o poder e estarem na raiz da calamidade. Santo Agostinho dedicar-se-ia a uma justa resposta, contradizendo as calúnias. Nascia a De Civitate Dei.
Nessa obra, o santo de Hipona esclarece que os pecados dos romanos, a imoralidade dos deuses, teatros, entre outros, provocavam o esboroar do Império. Salvaguarda, desta forma, aqueles que abraçaram o Deus cristão e remete o argumento aos que acusavam a Igreja, colocando o dedo na chaga do verdadeiro problema. A solução também é dada por ele: padecer as consequências da imoralidade em que viviam, ou aderir ao cristianismo e salvarem-se [1]. Desta forma, prosperaria o Império e construir-se-ia, nesta terra, uma imagem, ainda que imperfeita, da Cidade de Deus, onde habitaria a “tranquilidade da ordem”, ou seja, a paz [2].
Para ele a cidade dos homens deveria ter como critério e meta a cidade de Deus. Entretanto, eles deparam-se com um dualismo: “a colocação de Deus acima de tudo, a ponto de esquecerem-se de si, ou a conversão às criaturas, a ponto de esquecerem-se de Deus. Estão, entretanto, chamados a viverem felizes na amizade de Deus e na perspetiva do prémio eterno, portanto, da cidade celeste. Assim, “os cidadãos da comunidade celeste – ou Cidade de Deus – haverão de viver na Comunidade Política mediante os valores da primeira, embora não sem os dissabores da segunda” (Jivaldo Lima, 2005, p. 229). Santo Agostinho deixa claro que os cristãos estão dispostos a estender a mão ao poder temporal, desaprovando, porém, a ingerência da Igreja no seu governo (Coleman, 2000a). A adesão dos potentados ao cristianismo, e aos ideais de caridade e justiça que dele decorrem, não visa enfraquecê-los. Pelo contrário, conforme a oração composta pelo santo:
Tu que unes não tanto em sociedade, mas à semelhança de uma fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens diretamente aos homens pela recordação dos primeiros pais. Ensinas os reis a favorecer aos povos; admoestas os povos a submeterem-se aos reis. A quem é devida a honra, a quem a afeto, a quem a reverência, a quem o temor, a quem a consolação, a quem a advertência, a quem a coação, a quem a disciplina, a quem a reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são para todos, deve-se a todos a caridade, e a ninguém a injúria (PL 32, p. 1336-1337) [3].
Pe. José Victorino de Andrade
Artigo adaptado da tese de doutoramento do mesmo autor.
Aportes da Igreja à Construção de uma Sã Laicidade. Medellín: UPB, 2013.
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[1] Quanto à defesa, ver especialmente o Capítulo I-VII da obra original. Para este texto baseei-me, sobretudo, em Santo Agostinho (2006), p. 99-116.
[2] “Pax omnium rerum tranquillitas ordinis” (De Civitate Dei. PL 41, l.19, c.13. p. 640).
[3] “Tu cives civibus, gentes gentibus et prorsus hominibus homines primorum parentum recordatione, non societate tantum sed quadam etiam fraternitate coniungis. Doces reges prospicere populis; mones populos se subdere regibus. Quibus honor debeatur, quibus affectus, quibus reverentia, quibus timor, quibus consolatio, quibus admonitio, quibus cohortatio, quibus disciplina, quibus obiurgatio, quibus supplicium, sedulo doces ostendens quemadmodum et non omnibus omnia et omnibus caritas et nulli debeatur iniuria” (De moribus ecclesiae Catholicae, XXX, 63. Tradução minha).
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Referências Bibliográficas
Coleman, Janet. (2000a). A history of political thought: from ancient greece to early christianity. Oxford: Blackwell Publishers. Vol. I.
Jivaldo Lima, José. (2005). Da Política à Ética: O Itinerário de Santo Tomás de Aquino. Porto Alegre: PUC – Rio Grande Sul.
Santo Agostinho. (2006). A cidade de Deus. Trad. J. Dias Pereira. 3a. ed. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian. Vol. I.
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