A Suma, conforme escreve Freppel, “é como um reservatório onde o fluxo da tradição se despejou por um instante antes de retomar o seu curso pelos tempos. Sagrada Escritura, pregação apostólica, apologistas cristãos, Padres da Igreja, Concílios, teólogos; São Tomás resume tudo, e que resumo!”. [1]
Ele é, entre os autores da Idade Média, aquele que melhor aplicou os resultados da Teologia positiva à Teologia escolástica.[2]
Como não poderia deixar de ser, a Suma nasce da Bíblia. Desta forma, menciona todos os livros do Novo Testamento, mas somente dois da Antiga Lei, e mesmo assim curtos e pouco assinaláveis: Abdias e Sofonias. Em contrapartida, partes notáveis poderiam ser reconstruídas graças às citações, e algumas quase integralmente, como no caso de certos capítulos do Gênesis.
O mestre sabe bem que o sentido literal é o verdadeiro, e normalmente o único eficaz. Muitas vezes ele recorre à Tradição para a explicação de um texto, quando o sentido não aparece claro, e quem contestará a legitimidade do procedimento? Por vezes, é verdade, a passagem escriturística não comprova nem representa senão uma semelhança de palavras com a tese a ser demonstrada, ou é mesmo – e isto é mais grave, quando se trata de textos dogmáticos – mal interpretada. Mas grande número de textos que se adaptam de modo imperfeito à verdade teológica é extraído do sed contra. Por outro lado, não exijamos dos teólogos da Idade Média a precisão da crítica moderna: a exemplo dos Padres, uma longa interpretação satisfaz muitas vezes. E, ademais, poderemos reprovar o Santo Doutor por considerar [apenas] a Vulgata? Isso não o impede de notar, em um ou outro lugar e de vez em quando, certas particularidades hebraicas, de apelar para outras versões, de precisar ou discutir algumas expressões gregas. Os nossos próprios manuais de teologia ainda têm alguns progressos a fazer quanto a esse ponto. Pertencerá, aliás, ao professor, suprir as lacunas, corrigir os erros, completar remetendo à Suma – cuja riqueza escriturística conhecemos -, de rejuvenescer a explicação de São Tomás pela crítica textual, por uma interpretação conforme as leis da hermenêutica e os dados da filologia.
Entretanto, a autoridade que fundamenta a doutrina sagrada é representada também pela Tradição. São Tomás recorre a ela, e com tanta frequência que as citações transformam a Suma num repertório sistemático de Patrologia. Conforme Leão XIII: “Os ensinamentos dos Padres jaziam por todos os lados como membros esparsos de um grande corpo. São Tomás reuniu-os, fortificou uns com outros, classificou-os numa ordem admirável, e, por fim, desenvolveu-os tão bem que a sua obra permanece para a Igreja católica, verdadeiramente única, tanto na sua força de tutela como em beleza”.[3]
Os dois primeiros séculos da literatura eclesiástica são raros na Suma, sem dúvida porque foram escritos em grego, e esta produção era menos conhecida na Idade Média. Numerosas obras da época, perdidas no tempo, viram a luz do dia apenas mais tarde. Dos Padres apostólicos, apenas Clemente de Roma é nomeado, e o mesmo se diga quanto aos apócrifos. Nada consta dos Apologistas. São relativamente poucas as citações de obras posteriores ao século VIII, talvez porque três ou quatro séculos parecessem a São Tomás uma antiguidade insuficiente: A seus olhos, os nomes mais consideráveis, são: Rabano Mauro, Anselmo, Bernardo e, mais que todos, Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças, que ele frequentemente utiliza sem o citar, sobretudo para a documentação patrística. Não o utilizaria da mesma maneira Alexandre de Hales?
Que abundância, em relação ao período intermediário! Ele interroga o Oriente e o Ocidente, os Padres e os Doutores; os símbolos e as definições dos concílios. Inicialmente Orígenes, Tertuliano e Cipriano; depois, após muito tempo, o pseudo-Dionísio e João Damasceno, Boécio, Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. E, entre uns e outros, os ilustres representantes do mais brilhante período literário da História da Igreja: Atanásio, o primeiro dos polemistas, os quatro Doutores da Igreja grega e os quatro da latina, entre os quais Agostinho, que ensinou a toda a Idade Média. O bispo de Hipona é para o Doutor Angélico a grande autoridade teológica, tal como Aristóteles representa a da razão.
Ele chega ao ponto de usar apócrifos. Mas o inconveniente não é grave se a doutrina spuria e das supposititia[4] representa de alguma forma a doutrina tradicional da Igreja. Ele fundamenta o Dogma apenas na grande e larga Tradição, e que discernimento na escolha de suas autoridades! Os testemunhos invocados numa questão são os dos especialistas; assim, a propósito da Graça, Agostinho intervém cinquenta e quatro vezes, contra cinco de Gregório, quatro de Dionísio, três de João Damasceno, duas de Ambrósio e Jerônimo, uma de Rabano Mauro e de Anselmo. Para mais, não será a admirável habilidade e a consciência do Doutor Angélico na utilização dos textos? De uma leitura, ele retém a frase ou a fórmula que exprime de maneira concentrada a substância do livro.
Esta imensa erudição será durante longo tempo uma das grandes fontes da patrística, e nós veremos os grandes teólogos, como Durand,[5] adotar e transcrever as soluções e os textos propostos por São Tomás.
Trata-se, portanto, de saber aproveitar esse tesouro.
Tradução e adaptação para artigo do Pe. José Victorino de Andrade para a Lumen Veritatis, n. 9, Out-Dez 2009 a partir do original francês. LE GRAND, Corentin. l’Enseignement de la Somme Théologique dans les Séminaires. Paris : Pierre Téqui, 1922. p. 35-43. (Première question : III Théologie spéculative et théologie positive).
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[1] Oeuvres, tome III, 3éme. Édition, p. 350.
[2] Cf. Os artigos de T. R. P. GARDEIL, La documentation de saint Thomas. Resposta a M. Turmel, na Revue Thomiste, Mai-Décembre 1904.
[3] Cf. Aeterni Patris. Na Encíclica encontra-se o seguinte texto: “Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e honra da Igreja” (n. 21).
[4] Doutrina “bastarda” ou ilegítima e das suposições ou conjeturas (tradução nossa).
[5] [Nota do tradutor] Guillaume Durand de Saint-Pourçain, dominicano francês, filósofo escolástico e teólogo, consultor de Clemente V e João XXII no Palácio Papal durante o exílio de Avignon e mais tarde bispo das Dioceses de Puy e Meaux. Conhecido como Doctor modernus, inaugurou o terceiro período da escolástica. Adotou muitas vezes o pensamento de São Tomás, embora também seja conhecido pelas críticas que lhe teceu. Os comentários às Sentenças de Pedro Lombardo constituem sua principal obra.
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