Deus não está na agitação

Boca do InfernoNon in commotione Dominus” (1Rs 19, 11) – Deus não está na agitação. Depois de caminhar quarenta dias e quarenta noites, até à montanha de Deus, fortalecido por um pão trazido pelos anjos, Elias, o Tesbita, gozou no monte Horeb de uma experiência de Deus, que não estava na agitação dos ventos, nos furacões ou nos tremores, mas no “murmúrio de uma brisa suave”. Então, o profeta encheu-se de zelo pelo Senhor Deus (cf. 1 Rs 19). Era também pela brisa da tarde que Deus percorria o jardim do Éden (Gn 3, 8) e comunicava com os nossos primeiros pais. O Espírito (Pneuma – vento) sopra onde quer, ouvimos a sua voz, mas não sabemos de onde vem, nem para onde vai (Jo 3, 8), explicava Jesus a Nicodemos na solidão e na tranquilidade da noite em que conversavam. Esta brisa tranquila, na qual encontramos Deus, deve levar-nos a recorrer àquele que tem poder para mandar calar a tempestade (Mc 5, 39) e transformá-la numa leve brisa (Sl 106, 20). Assim, o Senhor tem poder para pacificar os nossos corações e proporcionar um encontro capaz tranquilizar a nossa existência e retemperar forças para zelosos, e retemperados, prosseguirmos a nossa peregrinação terrena.

Nos ventos intempestivos, nos furacões e nos tremores das paixões dificilmente encontramos Deus. Não se trata de um mero estado de espírito que torna mais desfavorável uma experiência de Fé, mas da consequência de algumas ou mesmo das muitas opções na vida que acabam por ser excludentes d’Aquele que é o Criador de todas as coisas boas, belas e ordenadas, e por isso mesmo ausente das paixões desordenadas. Consequentemente, as nossas más opções, pelas coisas más, feias e caóticas, distantes de Deus, redundam nos nossos pecados. Aí não está Deus. Sto. Agostinho vê o mal como privação do ser, tal como a obscuridade é a ausência da luz. O mal, segundo o bispo de Hipona, é a ausência de Deus.[1] No momento em que colocamos o nosso coração e o nosso amor nas criaturas, inclusive em nós, mais do que no Criador, de acordo com o santo doutor, pecamos.[2] Ou o nosso coração está ordenado para Deus, ou desvia-se do seu fim para desordenarem-se as paixões. É por isso que um coração agitado, um temperamento irascível e impulsivo, até mesmo violento, pode revelar uma consciência necessitada de paz, carente de amor, afogada nas paixões, até mesmo perdida no pecado. É preciso muito discernimento para tentar auxiliar estas patologias psíquicas e espirituais, e não existem fórmulas mágicas para resolver estas questões, mas a Igreja estende aos mais carentes da graça de Deus a experiência sanadora que é oferecida através dos seus sacramentos, mormente a confissão.

Entretanto, é cada vez maior o número de pessoas que se aproxima de um confessionário, ou mesmo de um funcionário de uma igreja, conforme ecos que tenho recebido e experiências pelas quais tenho passado, não para declinar humildemente os pecados ou para qualquer direção espiritual ou diálogo construtivo, mas para vomitar as suas frustrações, transformando aquele momento e local pacífico e tranquilo num veemente protesto. Reclama-se da vida, como se a culpa fosse de Deus. A pessoa considera-se mais ou menos imaculada, a culpa das tragédias ou pertence aos outros ou aos céus. Ela grita, chora, reclama, amargurada, frustrada, irada… nada resolve, mas desesperada vai atrás de quem faça promessas fáceis, nem que tenha de acender uma vela a Deus e outra ao diabo… vive na exasperação, procurando quem tenha poder para ver se numa exorcizada fica sanada. É um processo não pequeno transformar o desespero em esperança, as trevas em luz, a amargura em doçura. Deus não está na agitação, e a primeira coisa a fazer talvez passe por manter a serenidade, que pode ser obtida pela oração, e por uma boa confissão, pela força e poder da comunhão, pelo amor e pelo perdão, para experimentar aquela paz,  a verdadeira paz, que de acordo com a conceção agostiniana é a tranquilidade da ordem, que só se recupera e vive quando o nosso coração encontra Deus. “Calai-vos!” (Mc 4, 39) – ordenava Jesus à violenta tempestade, apaziguando-a. É a Ele que cumpre recorrer, pois o Senhor tem poder para pacificar os nossos corações e libertar-nos das más paixões.

P. José Victorino de Andrade

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[1] Ver https://aportesdaigreja.com/2017/07/22/o-problema-do-mal-e-a-solucao-de-santo-agostinho/

[2] Cf. SANTO AGOSTINHO. Diálogo Sobre o Livre Arbítrio. INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001.

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