“O pouco de muitos se soma”. A frase é atribuída ao anjo bom da Bahia, a Beata Dulce dos pobres, religiosa que fundou um hospital para acolher os mais pobres entre os mais pobres, e que para tal dependia de doações. Ela revela o modo como a sua obra sobrevivia com pequenas ofertas, tal como a maior parte das instituições de caridade. Um bom número de vezes não são os grandes donativos que permitem os maiores esforços junto à miséria humana, mas o pouco de muitos que vivem humildemente, e compreendem a privação daqueles que vivem com maiores dificuldades. O senhor bem alertava ser “mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino do Céu” (Mt 19, 24), embora a menção ao animal de médio porte a entrar por um orifício tão exíguo seja um exagero didático, semelhante ao da crítica realizada aos doutores da Lei e aos fariseus hipócritas, que desprezavam o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade: “guias cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo!” (Mt 23, 23) – dizia-lhes Jesus, mais uma vez em referência ao peludo animal de bossa, tão útil e conhecido nas regiões desérticas do Oriente Médio. Um exagero didático, mas por demais eloquente… A ideia do rico que se fecha ao próximo é reforçada na parábola do rico epulão, que negando ao pobre Lázaro acolhimento e nutrição, cai na perdição. Sem dúvida que a caridade é fundamental e faz parte da mensagem evangélica. Aquilo que fizermos a cada um dos pequeninos, ao próprio Senhor o fizemos (Mt 25, 40).
Entretanto, a esmola material tornou-se hoje, mais do que nunca, uma tarefa que necessita discernimento. Trata-se de uma obrigação cívica e religiosa, mas ao mesmo tempo há que zelar para não se financiarem círculos viciosos e mafiosos. Não devemos patrocinar o uso e abuso de estupefacientes, do álcool ou mesmo de algumas máfias que empregam verdadeiros escravos pedintes para financiar uma vida à margem da lei. Dinheiro fácil, dado à interesseira mendicância, não só aumenta as dificuldades para diminuir a sua existência, como fortalece muitas redes criminosas e o comodismo de quem nessa vida permanece. Podemos e devemos praticar a caridade, dar esmola a quem nos estende a mão e quer comer (seria melhor dar alimento do que dinheiro), mas não nos podemos esquecer que a melhor forma e a mais eficaz é ajudando a ajudar, os que conhecem melhor do que ninguém as necessidades de cada um: as instituições. Levados pela necessidade, aconselhados por serviços sociais ou mesmo obrigados pelos tribunais, muitos homens e mulheres que vivem na pobreza recebem das instituições um auxílio mais eficaz do que a mera moeda recebida na rua. E nesse campo o Estado não está sozinho, nem pode estar. Soma-se assim a necessidade não só de pagar os nossos impostos e confiar na justiça distributiva e na assistência social, mas também auxiliar e dotar de meios humanos e materiais as Misericórdias e as Instituições Particulares de Solidariedade Social, que poderão fornecer acolhimento, alimento, higiene, apoio psicológico e médico, jurídico e social. Uma pequena doação de cada um de nós para instituições sérias e dedicadas fará muito mais do que muitas moedas nas mãos de pobres coitados viciados e alienados.
Conheci certa vez uma Paróquia que pediu para não se dar dinheiro aos pedintes que esperavam à porta, mas com essa verba, criou um fundo que possibilitou a intervenção de uma assistente social, bens alimentares e outros (medicamentos, material de higiene, etc.). Mais do que estender uma moeda, estendeu uma mão a quem mais precisava. Não podemos é cair naquele extremo dos que mais protestam, e que são geralmente os que menos fazem, e que inventam reiteradas desculpas para não auxiliar algumas campanhas de angariação de bens para os pobres. Baseiam-se sempre numa certa notícia, ou num cativo “ouvi dizer”, para escusar qualquer oferta, especulando que ela não chega ao destino. Parte dos nossos impostos também podem ir parar aos bolsos de políticos corruptos, pagar obras mal feitas, favorecer campanhas, interesses alheios, buracos financeiros… mas não é por isso que deixamos de pagá-los. Assim, novas estradas são construídas, reformas pagas, serviços públicos garantidos, e o país anda para a frente. Da mesma forma, se em várias toneladas de alimentos doados, alguns kgs por qualquer razão lamentavelmente não chegam ao destino, não podemos fechar os olhos a todos os outros milhares e milhares de bens que chegam a quem deles necessitam e que tiram da miséria e da pobreza extrema tantos que vivem com tão pouco.
Os estóicos, na Antiguidade, eram ensinados por Zenão a dar esmola sem se compadecerem, o que no paganismo já era visto como uma grande coisa, tornando a caridade quase inexistente numa fria e útil obrigação social. É a atitude de hoje, de quem dá para ver se o outro não insiste, não lhe toca, desaparece… até mesmo para ver se não rouba. Não se dá amor, a oferta mais importante, mas uma qualquer matéria desprovida de amorosa alteridade, uma hipocrisia involucrada de caridade. Não se visa assim o fim da mendicância, mas o fim daquele incómodo, e não se atingem objetivos satisfatórios, mas apaziguam-se medíocres egos pseudocaridosos. No seu hino à caridade, o Apóstolo São Paulo ensina-nos que a distribuição dos bens exige o amor, sem o qual de nada se nos aproveita (cf. 1Cor 13, 3). Adverte a Deus Caritas Est que o amor ao próximo não deve ser considerado pelo cristão como uma mera imposição externa, proveniente do mandamento, “mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor” (n. 31, a). Desta forma a verdadeira e amorosa caridade deve levar-nos mais longe, conforme o Papa Francisco na Laudato Si´: “o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias” (n. 231). No dia em que o Pontífice enalteceu o esforço que a Cáritas e outras organizações solidárias católicas têm feito no mundo no sentido de “garantir aos mais pobres uma vida mais digna e humana”, ele lembrou também que “o ato de caridade não é simplesmente dar uma esmola para aliviar a consciência”.[1] Não releguemos para os outros uma obrigação de cada cristão. Ainda que pouco, o pouco de muitos de soma… e o amor de todos vence!
P. José Victorino de Andrade
Outros artigos sobre a caridade cristã aqui.
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[1] Disponível em: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/vaticano/papa-caridade-e-mais-do-que-dar-esmola-para-aliviar-a-consci/
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