Aqueles que engaiolaram a Palavra de Deus nas redes da razão humana

evangeliumFruto de uma filosofia materialista e racionalista, e de ideologias que elevaram o cientificismo a uma religião, que tudo explica e tudo pode, cujo princípio moral foi simplificado à máxima “é possível, então faça-se”, e cuja lei da compreensibilidade tiraniza e descrimina o mistério, criou-se um mundo asséptico de surpresas e prodígios que reduziu a Fé ao plano sensitivo, mensurável, cerebral. Como se fosse possível minorar O Eterno, limitá-Lo à nossa perceção e distanciá-Lo deste mundo concreto. Como se fosse impedido ao Criador mudar as regras da sua Criação e operar milagres. Como se quiséssemos que Ele ficasse estático, sem interagir com os homens, operar obras espantosas e alterar o rumo dos acontecimentos. Um mundo ideologicamente sem muros que erigiu uma barreira quase intransponível entre a terra e o Céu, relegando Deus à perdição vaga das alturas. Lógica que entrou na religião, transformando o dogma numa improvável eventualidade, a Palavra de Deus numa humana criatividade e a Encarnação numa triste e trágica realidade. Só o explicável tem a sua existência, o inexplicável a inconsistência. A Bíblia foi assim adaptada e ridicularizada, numa sociedade onde nenhuma verdade pode ser permanentemente válida, numa mentalidade que só se ajoelha diante da moda transitória e relativista que passa. Infelizmente, só não passou a modinha de lançar sinistras sombras materialistas sobre a Sagrada Escritura, graças a Von Harnack e a Rudolf Bultmann, dois teólogos protestantes que após mais de meio século ainda subjugam a hermenêutica bíblica das nossas Universidades, mesmo entre os Católicos.

Karl Barth denunciou certa teologia liberal que surgia na segunda metade do século XX, responsável por tentar “engaiolar a Palavra de Deus nas redes da razão humana”.[1] Um dos maiores responsáveis por tal restricionismo hermenêutico foi Von Harnack, que via no método histórico-crítico o único que poderia oferecer uma leitura científica das Sagradas Escrituras e da Tradição. Escreveu três volumes relativos à História dos Dogmas, onde nega tanto os milagres como as verdades do cristianismo, pois na sua opinião, “os milagres seriam resultado da mentalidade mágica dos primeiros discípulos, e os dogmas seriam fruto da helenização do cristianismo”.[2] Completou esta falácia ruinosa para a Fé Rudolf Bultmann, com o seu método histórico-morfológico e a sistemática demitização, isto é, a negação de supostos mitos contidos na primitiva pregação que para o teólogo não se coadunam com a mentalidade científica. Para Bultmann, “mítica é uma narração de acontecimentos em que intervêm forças ou pessoas sobrenaturais ou sobre-humanas”.[3] Assim a ideia de céu e inferno, anjos e demónios, até mesmo a obra da salvação corresponde segundo o pensador liberal a uma imagem mítica que possuíam os autores do Novo Testamento. E reduz a Escritura ao problema de um futuro que é preciso acolher, um reino terreno, tão característico das utopias materialistas do seu tempo. Esta ilusão de transformar a Bíblia num livro social e científico acaba por minar o seu ser e a sua essência. A Escritura não ensina como funciona céus e terra, mas como viver na terra para alcançar o Céu. Acolher a Revelação de Jesus não é confinar na história e no tempo a sua mensagem soteriológica, mas guardar todas as suas palavras no coração, sem exclusão ou confusão.

Bento XVI, no seu livro Jesus de Nazaré, criticou duramente essas teologias que surgiram com certa força depois da década de 50 e que foram responsáveis por afastar os homens cada vez mais de Jesus, por causa de um Cristo fabricado à imagem dos seus comentaristas, que ora se torna um antirromano, um revolucionário para o seu tempo, ou até mesmo um derrotado. Esta análise bíblica tornou-se “dramática para a fé, porque se torna inseguro o seu ponto de referência mais autêntico”. De acordo com Ratzinger, “a cisão entre o ‘Jesus histórico’ e o ‘Cristo da fé’ tornou-se cada vez mais profunda, afastando-se ambos rapidamente cada vez mais um do outro. […] Os progressos da pesquisa histórico-crítica conduziram a distinções sempre mais refinadas entre camadas de tradição, por trás das quais a figura de Jesus, à qual precisamente a fé se refere, tornou-se sempre menos clara, perdeu sempre mais contornos”.[4] De acordo com o Pontífice, o método histórico-crítico só será possível partindo da Fé da Igreja e na fidelidade com o Magistério e a Tradição.[5] Hoje, até mesmo um professor de Hermenêutica da Faculdade Batista de Brasília é capaz de ver sérios problemas no método histórico-crítico, em primeiro lugar por causa da própria crítica, “uma bitola limitadora”, capaz de introduzir ideologias alheias à Escritura, e caindo a hermenêutica num vazio relativista e subjetivista; em segundo lugar, a conceção histórica, pois se considerarmos que a Bíblia não foi escrita por homens inspirados, nega-se a revelação de Deus; por fim, ele analisa os trágicos resultados, pois também nos templos Evangélicos a análise histórico-crítica “destitui o equipamento da fé, debilita o fundamento espiritual, afugenta as vocações, inibe a contemplação, causa embaraço à evangelização e ao acesso da pessoa não-especializada ao texto bíblico. Funciona como um desserviço para a causa do Evangelho”.[6] Ou seja, este método não foi somente corrosivo para o catolicismo, mas também para o protestantismo, para a Fé cristã em geral.

Os milagres na Bíblia não têm nenhuma pretensão científica, mas “dirigem-se ao nosso coração e não à razão, apelam para a fé do crente e de certo modo solicitam, além da legítima admiração que suscitam, o seu reconhecimento e a sua ação de graças”.[7] Para o Capuchinho Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, “cerca de um terço do Evangelho é dedicado às curas realizadas por Jesus no breve período da sua vida pública. É impossível ignorar esses milagres ou dar deles uma explicação natural sem transtornar todo o Evangelho e torná-lo incompreensível”.[8] Querer uma explicação lógica e natural para explicar todos os fenómenos sobrenaturais e miraculosos da Sagrada Escritura é matar a Palavra, e não deixar que o Espírito a vivifique. Uma análise seca e materialista deixa aos fiéis uma enorme sede de espiritualidade que leva muitos crentes, sedentos de sobrenatural, a procurem noutras religiões e superstições as forças cósmicas ou mágicas que são negadas ao legítimo e autêntico milagre. A hermenêutica histórico-crítica, fora do contexto da Fé, da Tradição e do Magistério, desarraigou e desnorteou muitas almas, e transformou muitos seminaristas e ministros em materialistas convictos, com sérios problemas de Fé, que tudo banalizam e desmistificam, explicam, resolvem, professores que imitam no modo de pensar e de vestir um Harnack e um Bultmann, quando deviam comportar-se como ministros da Palavra e não como donos do mistério. Eles não acreditam no milagre e, entretanto, dependem de um para voltarem a um autêntico entusiasmo ao Senhor dos milagres, “pois para Deus nada é impossível” (Lc 1, 37). Não pretendemos com isto uma hermenêutica puramente devocional ou literal. Como escrevia o Papa Francisco na Evangelii Gaudium “o cientificismo e o positivismo recusam-se a ‘admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas’. A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana (n. 242).

P. José Victorino de Andrade

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[1] REALE, G.; ANTISERI, D. Historia da filosofia. Vol. 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. p. 363.

[2] Ibidem, p. 364.

[3] Ibidem, p. 366.

[4] RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré I: do batismo no Jordão à transfiguração. Trad. José Ferreira de Farias. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. p. 8-9.

[5] BENTO XVI. Aos professores e alunos do Pontifício Instituto Bíblico. 26 Out. 2009. Disponível em: https://pt.zenit.org/articles/bento-xvi-e-biblia-metodo-historico-critico-sim-mas-a-partir-do-magisterio/

[6] CONTAIFER, Valdeir. Crítica ao Método Histórico Crítico. Brasília: FTBB (Faculdade Teológica Batista). Doc do Curso de Hermenêutica, s/d.

[7] BOUFLET, Joachim. Uma História dos milagres. Lisboa: Teorema, 2010. p. 22

[8] Apud ibidem, p. 24.

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