O falecido Cardeal Lustiger já havia alertado para esta nova realidade que haveria de inundar as nossas sociedades com uma força enorme. Depois de se ter coibido e perseguido as religiões num passado recente, o fenómeno religioso despertaria, mas traria com ele novas e antigas crenças e superstições. Ainda que hoje a Fé seja submetida ao silêncio ou relegada ao campo emotivo nas sociedades pós-modernas, e as religiões consideradas relíquias subsistentes do passado (Habermas),[1] surgiu nessa lacuna “fenómenos religiosos estranhos[…]: pululamento de seitas, agrupamentos de inspiração esotérica, importação de práticas imitadas das religiões orientais – sem falar de explosão dos ‘fundamentalismos’”.[2] Dada a dificuldade do homem em ser arreligioso, ainda que se declare ateu, ele vai dessedentar a sua sede religiosa em magia ou superstição, livros, espetáculos, filmes, heróis e personagens míticas e lendárias, criaturas estranhas e homens poderosos, ficção científica e efeitos especiais, autênticas “fábricas de sonhos” numa confusão mágico-mitológica-religiosa que visa sanar uma espécie de nostalgia do sobrenatural e da Fé.[3] E neste sentido, com maior ou menor honestidade, há sempre aqueles que se aproveitam desse vazio existencial para propor caminhos diversos, alienações sociais e lavagens cerebrais. Surgem então, com uma força nunca vista, as seitas.
À semelhança de uma anestesia, o relativismo em matéria religiosa amorteceu consciências indiferentes ao surgimento de novas formas de religião. Considera-se hoje que todas têm o mesmo Deus, ou que as religiões são todas iguais… nada mais néscio do que este chavão desorientador. O Budismo, por exemplo, é considerado não teísta, o oposto do Hinduísmo com uma pluralidade de deuses e avatares, uma religião de entidades míticas e de místicos. Para os muçulmanos Alá é Deus e Maomé o seu profeta, e mesmo nos países mais tolerantes condenam (muitas vezes à morte) aqueles que acreditarem num Deus Uno e Trino, tal como O consideram os Católicos (Pai, Filho e Espírito Santo). Tanto para os Judeus como para alguns protestantes, Jesus não é Deus, mas um profeta, filho predileto ou adotado do Pai. Outras designações evangélicas têm dificuldades com o Espírito Santo, e para outras só o Pai é Deus… Os livros sagrados acerca de Deus não são iguais à Bíblia Católica, nem as considerações tecidas a Deus pelo Alcorão ou os Tantras Hindus, os escritos de místicos orientais ou os ensinamentos das religiões tribais… nem mesmo as reduzidas e muitas vezes mal traduzidas versões protestantes. Nem os ritos ou as práticas. Como pode um Deus igual ter um culto e propriedades tão desiguais? Definitivamente não é o mesmo Deus. É até a partir das diferenças que o diálogo inter-religioso se torna possível, de credos e práticas distintas, e não de uma miscelânea de crenças ou sincretismo que mina e baralha a pacífica coexistência num pluralismo quase exclusivo dos países de maioria cristã.
Fora das grandes e históricas religiões, em frágil e pacífico diálogo e cooperação, vão pululando novas seitas com práticas estranhas, desenraizadas da nossa cultura, fechadas ao diálogo, considerando as demais inimigas e agentes da perdição. Seitas, encerradas na sua doutrina, só ela passível de salvação. É até uma defesa do seu pastor ou guru, condicionar mentes para não perder a “clientela”, uma vez que entre os sinais de fidelidade e salvação a que são submetidos os fiéis consta a entrega de bens materiais dos devotos aliciados com sofismas sobre a despretensão e os bens futuros. A pessoa passa a trabalhar e a viver exclusivamente para aquela coisa. A influência da família torna-se perigosa e indesejada. Abandonam-se círculos sociais e distrações ocasionais. A presença da pessoa diante do guru carismático surge como dependência que de entusiasmo passa a marasmo. Doutrinas privilegiadas são então confiadas para amarrar ainda mais uma mente subjugada no pilar do gnosticismo sectário. A modernidade ou é ocultada ou diabolizada. Tudo é mau no mundo externo e nos que pensam de maneira diferente. Tudo caminha para um castigo e um abismo iminente, e só ali, naquela doutrina e naquela prática, está a salvação, terrena e eterna. Preocupada com tudo isto, a Igreja na Itália elaborou um documento publicado pela Editrice Vaticana sobre as seitas e o grande desafio cultural, educativo e religioso que elas constituem (ver aqui o Doc em Italiano)[4] num país que conta já com largas dezenas de instituições satânicas que têm atraído jovens descristianizados, atraídos pelo oculto, mágico e supersticioso, levados por temerária curiosidade sobre o demónio e o seu poder.
Em Portugal contamos com mais de 830 confissões religiosas oficiais.[5] Sem contar com as marginais. Um pequeno país onde cresce o seu número, em cada bairro, daqui a pouco em cada esquina. Ainda que possa haver algumas que com sinceridade buscam espiritualidade, seria muita ingenuidade pensarmos que tudo é bom e que Deus está em todas. É o que as seitas dizem no início, embora elas mesmas não creiam nisso. Cativam fazendo-se inicialmente tão bonzinhos. Poderá ser bom quem instrumentaliza as divindades para fazer negócio? Quem aparta e aliena pessoas da sociedade e da família? Quem condiciona mentes e liberdades? Quem desrespeita as grandes religiões, na exclusividade de uma salvação que curiosamente deixa toda uma história religiosa e uma humanidade envolta em trevas? Prometendo uma moral mais comodista e suave, uma igreja (garagem ou comércio adaptada para o efeito) onde há sempre um pequeno grupinho sorridente de afeiçoados internos e inimigos externos, e um pastor ou guru tanto mais amigo quanto maior for o dinheiro que o fiel leva consigo. Aos poucos as imagens dos santos vão para o lixo, a pessoa é batizada (quando já era batizada desde a infância), muda o modo de vestir, de falar, de se comportar. Com sorriso cínico, trajo deslavado e cabelo penteado, já só pensa em novos prosélitos, jubilo do pastor e promessa de céu.
Alerta portugueses! O que nos traz esta gente não professaram os nossos egrégios avós, não impulsionou a nossa história, nem está na raiz do que pensamos e do que somos. Ventos de discórdia e alienação social sopram de longe e atingem a nossa terra. Não nos deixemos levar…
P. José Victorino de Andrade
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[1] Cf. HABERMAS, Jürgen. Zwischen Naturalismus und Religion. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2005.
[2] LUSTIGER, Jean-Marie. Como Deus abre a porta da Fé. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2007. p. 44.
[3] Quanto a este tema, recomendo um estudo interessante de MARDONES, José María. Las nuevas formas de la religion: La reconfiguración postcristiana de la religión. Estella: Verbo Divino, 1994.
[4] CONFERENZA EPISCOPALE EMILIA-ROMAGNA. Religiosità alternativa, sette, spiritualismo: Sfida culturale, educativa, religiosa. Roma: Editrice Vaticana, 2013. Em Portugal existe uma tradução realizada pela Paulus Editora. Ver: https://paulus.pt/religiosidade-alternativa-seitas-espiritualismo
[5] Disponível em: https://fronteirasxxi.pt/religiao/