Enquanto Cardeal de Milão, D. Giovanni Battista Montini tinha já revelado fundadas preocupações quanto ao progresso dos povos, conforme se pode constatar pelo seu último livro escrito antes do Conclave que o escolheria para Papa, onde disserta sobre as relações temporais e espirituais e a presença dos cristãos no mundo material.[1] Uma viagem ao continente Africano e à América Latina, no início da década de 60, assim como uma estadia na Índia e na Terra Santa, sensibilizariam Paulo VI para as enormes diferenças sociais e a grande luta pelo desenvolvimento nesses países[2] além do abismo cada vez maior no mundo entre o norte e o sul.
Dois anos após o encerramento do Concílio Vaticano II e aproveitando com os ventos favoráveis da Constituição Pastoral Gaudium et Spes,[3] Paulo VI escreve a Populorum Progressio e chama a atenção para os problemas económicos e a sua dimensão global, a necessidade de se ter em conta não apenas um crescimento quantitativo, mas também qualitativo, integral, não só do homem, mas de todos os homens, para acabar com injustiças e instaurar uma solidariedade mundial.[4] Para ele, tratava-se de uma questão emergente, pois o progresso seria apenas de alguns, o que poderia custar o retrocesso de outros, conforme ele mesmo advertiu na Encíclica: “são muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação e, até mesmo, do retrocesso de outros. No entanto, é preciso que a obra a realizar progrida harmoniosamente, sob pena de destruir equilíbrios indispensáveis” (n. 29).
Através deste documento, Paulo VI viria também a justificar a criação de uma nova comissão pontifícia com a finalidade de “promover o progresso dos povos”. “Justiça e paz é o seu nome e o seu programa” a fim de unir católicos, irmãos cristãos e homens de boa vontade para “uma ação organizada para o desenvolvimento integral do homem e para o desenvolvimento solidário da humanidade” (n. 5). Paulo VI, enfrentaria também uma deturpada visão de que o mundo material pretendido pelos cristãos era contra a prosperidade,[5] e por isso não hesitaria em demonstrar que, não só historicamente como concretamente, pela fidelidade aos ensinamentos e a Jesus Cristo “a Igreja nunca descurou a promoção humana dos povos aos quais levava a fé em Cristo”, construindo através dos seus missionários “asilos e hospitais, escolas e universidades”, ensinando e protegendo da cobiça de alguns, mas também cultivando e promovendo as “instituições locais”, em suma, homens e mulheres “a quem a caridade de Cristo impelia, assim como aos seus êmulos e sucessores, que ainda hoje continuam a servir generosa e desinteressadamente aqueles que evangelizam” (n. 12).
São João Paulo II, na Sollicitudo Rei Socialis, soube distinguir três novidades trazidas pela Populorum Progressio: a própria Encíclica em si, os horizontes que se abriam para a questão social, e a afirmação de que o desenvolvimento equivale à paz[6]. Na verdade, quando a Igreja reza pedindo a paz, não se trata de uma paz qualquer, mas a “tranquilidade da ordem”,[7] que não se constrói, para Paulo VI, sem um autêntico “progresso humano e espiritual de todos e, portanto, bem comum da humanidade”. E continua ele, no mesmo parágrafo da Populorum Progressio, à guisa de conclusão: “A paz não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens” (n. 76).
A Caritas in Veritate enalteceria a Populorum Progressio por estar “intimamente conexa com o magistério global de Paulo VI e, de modo particular, com o seu magistério social”; a proposta da caridade cristã enquanto “principal força ao serviço do desenvolvimento” o que possibilitaria “tornar o amor de Cristo plenamente visível ao homem” (n. 13) e a indicação da característica essencial de um autêntico progresso dos povos, integral: “o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação[…] [o que] equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último (n. 16).
Por fim, não se poderia deixar de fazer aqui uma menção, ainda que pequena, à Carta Apostólica Octogesima Adveniens. Saída a lume 80 anos após a publicação da Rerum Novarum de Leão XIII, esse segundo principal documento social de Paulo VI dirigia-se mais internamente à Igreja, se comparado à Populorum Progressio, destinada a todos os homens[8]. Para Hervé Carrier, esta carta adverte a responsabilidade das comunidades cristãs relativamente ao futuro do nosso mundo, e apresenta a Doutrina Social da Igreja enquanto inspiradora das ações concretas dos cristãos, uma vez que não existem soluções únicas para os problemas do mundo, e que naquele tempo, não muito diferentes de hoje, envolviam questões como: o papel das mulheres, a descriminação racial, a explosão demográfica, o meio ambiente, além das novas tendências fortemente relacionadas com ideologias, entre elas a comunista. Para todas estas dificuldades, a Octogesima Adveniens atualizou os ensinamentos da Igreja, e propôs uma vez mais o estudo e aplicação dos conselhos evangélicos, além da doutrina do Magistério quanto ao ensinamento social[9].
P. José Victorino de Andrade
Trechos extraídos e adaptados de: VICTORINO DE ANDRADE, José. Aportes da Igreja para um autêntico Progresso. Medellín: UPB (Mestrado em Teologia Moral), 2009.
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[1] Tive acesso à versão inglesa: MONTINI, G. B. The Christian in the Material World. Baltimore: Helicon, 1964. p. 71.
[2] Cf. CARRIER, Hervé. El nuevo enfoque de la Doctrina Social de la Iglesia. Vaticano: Poliglota Vaticana, 1989. p. 156.
[3] A respeito dos passos dados pelo Concílio Vaticano II em geral, e pela Gaudium et Spes em particular, convido a ler o pequeno resumo histórico do ex-director da BAC e actual director do Instituto de Humanidades da Universidade San Pablo-CEU de Madrid, GUTIÉRREZ GARCÍA, José Luis. Introducción a la Doctrina Social de la Iglesia. Barcelona: Ariel, 2001. p. 136.
[4] Cf. CARRIER. Op. cit. p. 29.
[5] Cf. MONTINI, Op. Cit., p. 17.
[6] Cf. ORIOL, Antoni M. De la Rerum Novarum a la Centessimus Annus: Síntesis dinámica de los 12 principales documentos de la Doctrina Social de la Iglesia. Toledo: San Ildefonso, 1999. p. 40.
[7] São Tomás de Aquino serve-se desta afirmação de Santo Agostinho para explicitar a questão da paz enquanto “tranquilidade da ordem”, ou seja, quando o homem está em ordem (interior e consequentemente exterior) com Deus, quando O encontra estavelmente apesar dos tropeços desta terra, ainda que de um modo imperfeito, pois a paz perfeita apenas se poderá lograr na Beatitude. (Cf. S. Th. II-II, q. 29. a. 2).
[8] Cf. GUTIÉRREZ GARCÍA, José Luis. Introducción a la Doctrina Social de la Iglesia. Barcelona: Ariel, 2001. 137.
[9] Cf. CARRIER. Op. cit., p. 161-162.
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