Não foi há muito tempo que o Cardeal Zenon Grocholewski, o então Prefeito da Congregação para a Educação Católica no Vaticano, fez um apelo às Universidades Católicas para manterem a sua identidade, e apontou para riscos futuros caso não o fizessem. Numa entrevista à ACI Digital, queixava-se mesmo das múltiplas queixas que recebia de vários estudantes dessas Instituições a quem eram ensinadas doutrinas contrárias às da Igreja, e qualificava estes centros de estudos como “hipócritas e mentirosos”. E advertia os docentes que aí ensinam que “para ser teólogo a pessoa deve acreditar nas Sagradas Escrituras e na Tradição, e deve estar unido ao Magistério da Igreja. É arriscado que uma pessoa queira ser mais importante que este Magistério da Igreja.”[1] Para se lecionar numa instituição do ensino superior, católica, é preciso fazer inicialmente uma Profissão de Fé, perante a legítima autoridade, de acordo com o Direito Canónico: “o reitor, professores de teologia e filosofia” e também “os docentes que ensinam disciplinas relacionadas com a fé e a moral em quaisquer universidades” (C. 833). Muitas instituições repetem essa celebração no início de cada ano letivo, para recordar ao corpo docente as verdades da Fé e aquilo “que está contido na palavra de Deus, escrita ou transmitida pela tradição, e é proposto pela Igreja, de forma solene ou pelo Magistério ordinário e universal, para ser acreditado como divinamente revelado”, assim como a aceitação firme “acerca da doutrina da fé e dos costumes” conforme “proposto de modo definitivo pela mesma Igreja”. O documento pede ainda a adesão do professor “com religioso obséquio da vontade e da inteligência, aos ensinamentos que o Romano Pontífice ou o Colégio Episcopal propõem quando exercem o Magistério autêntico, ainda que não entendam proclamá-los com um acto definitivo”.[2] O texto é claro, e compreende-se que o responsável da Santa Sé pelo ensino religioso tenha qualificado de “hipócritas e mentirosos” aqueles que na sua práxis desonram aquilo que prometeram.
São João Paulo II, no documento Ex-Corde Ecclesiae dedicado às Universidades Católicas, afirma que uma das suas “características essenciais” deve ser “a fidelidade à mensagem cristã tal como é apresentada pela Igreja” (n. 13§3). E apela a que nelas seja dada uma boa formação cristã, “ensinada em plena fidelidade à Escritura, à Tradição e ao Magistério da Igreja”, que proporcione “um claro conhecimento dos princípios do Evangelho” de modo a que os estudantes se tornem “verdadeiramente competentes no sector específico, a que se dedicarão ao serviço da sociedade e da Igreja, mas ao mesmo tempo sejam também preparados para testemunhar a sua fé perante o mundo” (n. 20). É necessário preparar os alunos, sobretudo os seminaristas, para a futura realidade pastoral que terão a enfrentar, de maneira a não se tornarem grandes doutores e parcos padres. Para tal, a Universidade deve contribuir com o Seminário, para não deixar este só na formação dos futuros pastores. No mesmo documento, São João Paulo II recorda ainda aos bispos a importância de zelar para que a Universidade Católica mantenha a sua identidade e também o necessário diálogo com os teólogos, uma vez que por um lado “a teologia procura a compreensão da verdade revelada, cuja interpretação autêntica está confiada aos Bispos”, e por outro, cabe aos teólogos “respeitar a autoridade dos Bispos e aderirem à doutrina católica segundo o grau de autoridade com que ela é ensinada” (n. 29).
No final de 2017, o Papa Francisco assinou a Constituição Veritatis Gaudium sobre as Universidades e as Faculdades Eclesiásticas fornecendo-nos uma visão Nova et Vetera de como devem ser os estudos nessas instituições à luz do Vaticano II. Nesse documento, o Papa lembra os novos desafios e conceções, assim como as crises filosóficas e socioambientais, e as necessárias respostas sociais, evangelizadoras, de diálogo, sempre iluminadas pela verdade revelada (n.4). E recorda aspetos pastorais importantíssimo a ter em conta no ensino: a fé e a prática, o pastoreio, certa “apologética original”, o senso da fé dos fiéis, o serviço do povo de Deus (n.3-6). Também aqui o Santo Padre quer pastores com o cheiro das ovelhas, para o saber não ficar distante da realidade e das necessidades de uma boa formação cristã, e tudo isto “sem renunciar à verdade” (n. 5). Os professores que habitam no alto da sua Cátedra, sem descer às periferias humanas e existenciais, vivem uma realidade à parte e não preparam os seus alunos para as reais e futuras necessidades pastorais. Até a linguagem torna-se muitas vezes incompreensível, com terminologias acessíveis somente aos grupos linguísticos que tiveram os mesmos docentes, capazes então de descodificar a antilinguagem.[3] Temos como exemplo aquele sermão ou aquela conferência em que se falou em bom português, mas nós não entendemos nada, e no fim, saímos vazios…
O Papa Francisco, na Veritatis Gaudium, apela ainda a uma vida coerente de quem ensina. O Art. 26 do Documento, nas Normas Comuns (I Parte), lembra que:
- 1. Todos os professores, seja qual for a sua categoria, devem distinguir-se por honestidade de vida, integridade de doutrina e constante dedicação ao desempenho do cargo, para que assim possam contribuir eficazmente para se conseguirem os objectivos próprios da instituição académica eclesiástica. Quando venha a faltar um destes requisitos, os docentes devem ser removidos da sua missão, observando o procedimento previsto (cf. can. 810 §1 e 818 CIC).
- 2. Aos professores que ensinam matérias respeitantes à fé e aos costumes, é exigido que estejam conscientes de que este múnus deve ser exercido em plena comunhão com o Magistério autêntico da Igreja e, sobretudo, do Romano Pontífice…
É oportuno ainda lembrar alguns pontos do discurso do Santo Padre, o Papa Francisco, dirigido especificamente à Universidade Católica Portuguesa:
– Que aí não se olhem os graus universitários como sinónimos “de maior posição”, de “mais dinheiro” ou “prestígio social”;
– Que se mantenha “católica” para recordar “a verdade integral do Evangelho sobre o homem e o sobre o seu caminho moral”;
– Que os Docentes se lembrem que por detrás deles “fala uma comunidade crente, na qual, durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; uma comunidade que guarda em si um tesouro de conhecimento e de experiência ética, que se revela importante para toda a humanidade” e que sejam testemunhas “da validade de uma razão ética”;
– Que o “dogma da fé” que Nossa Senhora disse em Fátima que não desapareceria em Portugal tenha a devida contribuição da Universidade Católica Portuguesa.[4]
Um aporte extraordinário do Papa, que tem um bom conhecimento da situação desta Instituição em Portugal, a única dedicada ao ensino teológico, e que faz um apelo a que esta possa distanciar-se de uma visão mundana, comercial, por vezes heterodoxa, e a sua grande importância para não se desvirtuar da altíssima missão confiada por Nossa Senhora de Fátima a uma nação que, segundo foi transmitido pela irmã Lúcia, não perderia o “dogma da Fé”.[5]
P. José Victorino de Andrade
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[1] GROCHOLEWSKI, Zenon. 20 anos da Ex-Corde Ecclesiae: Entrevista a ACI digital. Disponível em: https://www.acidigital.com/noticias/so-as-universidades-catolicas-que-conservam-sua-identidade-tem-futuro-diz-autoridade-vaticana-14949
[3] A linguística, e sobretudo a sociolinguística, explica tratar-se de uma linguagem usada com os mesmos códigos linguísticos comuns a um falante-ouvinte de determinada língua, mas cujo contexto ou conjunto de vocábulos é apenas compreensível ou corretamente descodificado por aqueles que o conhecem. Seria reconhecer, por exemplo, uma frase como pertencendo ao português, bem construída, mas apenas descodificada no seu sentido mais profundo por quem tem conhecimento prévio daquilo que verdadeiramente se quer dizer.
[4] Ver o documento do discurso completo no site da Conferência Episcopal Portuguesa. Disponível em: http://www.conferenciaepiscopal.pt/v1/discurso-do-papa-francisco-na-audiencia-com-a-universidade-catolica-portuguesa/ Importante o contexto e a notícia em: http://rr.sapo.pt/noticia/96760/francisco-propoe-tres-reflexoes-a-universidade-catolica
[5] IRMÃ LÚCIA. Memórias. 17 ed. Fátima: Fundação Francisco e Jacinta Marto, Jun. 2015. p. 177.