Quando membros de instituições, governos e órgãos públicos da velha Europa citam matérias religiosas, surgem com muita frequência críticas dos mais puritanos laicistas, ou da imprensa ideologicamente comprometida, vociferando contra as palavras ou escritos sacros considerados ofensivos ao Estado Laico. Ainda que fossem frases como: “A justiça protege o homem de vida íntegra, mas a corrupção arruína-o” ou “os bens adquiridos à pressa, depressa desaparecem…” – considerar-se-iam ricas e proveitosas, sinal de cultura e sabedoria, caso fosse citado um autor ou escritor da esfera pagã. Um Séneca, Virgílio, qualquer filósofo dos gregos aos modernos, seria aplaudido. Talvez até mesmo tolerado caso pertencesse ao legado de um Sidarta Gautama (Buda) ou Confúcio. Porém, os trechos citados pertencem ao capítulo 13 do livro dos Provérbios. Se fosse um membro do governo ou funcionário público e dissesse no exercício das suas funções que estava a citar a Bíblia, depressa seria acusado de desrespeitar o Estado laico. Esse é o estigma a que relegaram qualquer citação dos Livros Sagrados. E essa, é uma aversão própria ao contexto europeu.
O Continente Americano, por exemplo, conta com regimes políticos laicos, embora a laicidade de Estado seja entendida de forma diferente à conceção rígida e excludente que se vive na maioria dos países Europeus. Em certo número de nações Americanas, é possível a um político ou funcionário público, mesmo em representação dos órgãos oficiais, citar trechos da Bíblia com a mesma naturalidade que algum outro poderia citar o Talmude ou o Alcorão. Poderia até significar pedagogia e brilhantismo em determinado discurso ou trabalho, enriquecido igualmente com outras expressões ou frases históricas, literárias, filosóficas, de determinada cultura ou de cunho popular. Qualquer ouvinte aceitaria dentro do pluralismo e do espírito democrático a citação bíblica, sem contestar a laicidade, pois esta significa inclusão, e não descriminação. O homem religioso não pode ser e deixar de ser, conforme o local ou cargo. Ser coerente e autêntico é incompatível com uma fé em part-time, ao sair de um escritório. Numa democracia, o voto em determinado candidato exprime muitas vezes uma sensibilidade religiosa, e os partidos sabem e aproveitam-se disso. Embora depois os políticos não o vivam concretamente no exercício das suas funções públicas.
O juramento de fidelidade professado por um candidato eleito antes de assumir a Presidência dos Estados Unidos da América tem sido realizado com a mão sobre uma Bíblia, pois há princípios pré e suprapolíticos pelos quais deve reger-se um juramento, sem prejuízo da laicidade vigente. No pluralismo Norte-Americano, os homens de política podem ser religiosos, das mais variadas confissões, e conviver no pluralismo sem ter de negar ou excluir Deus do exercício das suas funções. Os Republicanos determinaram a separação entre a Igreja e o Estado no início do século XIX como um dos princípios orientadores da sua ação política, para assim abolir a confessionalidade de alguns Estados e responder à multiplicidade de credos, e consequentemente poderem livremente viver e professar a sua fé. Thomas Jefferson[1] “viu a ética cristã como essencial para as harmoniosas relações sociais na democracia dos Estados Unidos e acreditava que a liberdade de religião iria promover tolerância, moralidade, progresso, e a ‘ética de Jesus”.[2] Uma solução pacífica, diplomática e plural para a questão. É assim que o processo de separação e liberdade nos Estados Unidos da América poderá ser considerado um exemplo de construção de uma sadia laicidade em alternativa aos velhos e desgastados modelos anticlericais europeus inspirados na Revolução Francesa.[3]
P. José Victorino de Andrade
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[1] “Possibly the most famous thinker of the American Revolution and early American Republic, this author of the Declaration of Independence and founder of Jeffersonian Democracy is the quintessential American political philosopher” (SHELDON, Garrett Ward (ed). Encyclopedia of Political Thought. New York: Facts On File, 2001. p. 162).
[2] “He saw Christian ethics as essential to the harmonious social relations in the U.S. democracy and believed that freedom of religion would promote tolerance, morality, progress, and ‘the ethics of Jesus’. His conception of the separation of Church and State made America both the most diverse, religious society and the most Evangelical Christian nation in the world” (Ibidem, p. 163. Tradução minha).
[3] “En el discurso a la Curia romana del 2005 […] Benedicto XVI presentaba el modelo americano como alternativa válida al laicismo que surge de la revolución francesa. Con ocasión del viaje pastoral a Estados Unidos, en el mes de abril del 2008, el Papa volverá a poner dicho modelo como ejemplo de sana laicidad” (FAZIO, Mariano. La sana laicidad en el pensamiento de Benedicto XVI. In: UNIVforum. Roma: Istituto Cooperazione Universitaria, Newsletter, 2010. p. 6).
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