Considerando que os dez mandamentos estavam caducos, o homem trouxe a solução para os seus problemas, uma nova determinação, um preceito moral acima de todos os demais: NÃO SOFRERÁS! O novo mandamento da lei dos homens que relega a um plano secundário a lei de Deus tornou-se absoluto, e o legislador passou a redigir e decretar as suas leis amparado por uma ética que tudo permite para fugir a qualquer dor. Os nossos dias possuem uma tecnologia capaz de dobrar barras enormes de ferro como se fossem alfinetes, mas a mais pequena alfinetada faz o homem dobrar-se e capitular. Interessa à filosofia utilitarista[1] dos governos ter a maior parte dos subalternos felizes e satisfeitos. Obtém votos. E para tal, usam o pão e o circo dos nossos dias, velha estratégia utilizado pelos Imperadores e déspotas que satisfazem as paixões, mesmo as mais baixas e reles do populacho, em troca de um poder total, apelidado nas democracias de maioria absoluta.
À sombra desse novo mandamento, NÃO SOFRERÁS, justificam-se os maiores desmandos. Até onde a criatividade da ciência, da medicina e da lei possam ir, quebram-se os limites da moral, alargados pelo que é possível e não o que é bom. Um bebé não é desejado, em vez de alegria traz dor e sofrimento, aborta-se. Se um doente não tem cura e sofre, mata-se. Um idoso incomoda, interna-se. Alguém não está satisfeito com o seu corpo ou com o seu sexo, transforma-se. O casamento está difícil e árido, separa-se. A droga inebria e aliena dos padecimentos cotidianos, legaliza-se. A mentira impede receber uma bronca, inventa-se. E se Deus impede a fruição das paixões livres, nega-se! Deitámos no lixo os mandamentos da lei de Deus, do primeiro ao último, em nome do NÃO SOFRERÁS! Uma lógica tão contrária ao servo sofredor (Is 53), Cristo Senhor, o manso Cordeiro imolado por nós, Homem de dores, Redentor dos homens. Lógica ainda contrária à Mãe de Deus e nossa, trespassada de dor na sua alma (Lc 2, 35); contrária aos maiores amigos de Deus, os santos que passaram por terríveis sofrimentos e privações, até mesmo pelo martírio. Ao passar por tribulações terríveis, Job aprende aos pés desse grande mestre da vida chamado sofrimento e adverte-nos para não preferirmos a injustiça. “Deus salvará o pobre pela sua miséria, e o instrui pelo sofrimento” (Jb 36, 15); “Guarda-te de declinar para a iniquidade, e de preferir a injustiça ao sofrimento” (Jb 36, 21).
O sofrimento desprovido de um sentido e um bem maior leva-nos ao desespero e a preferir qualquer loucura. São João Paulo II no seu profético documento sobre o sentido cristão do sofrimento, a Salvifici Doloris, inspirado provavelmente pelos sinais dos tempos, lembrava-nos a longa tradição da Igreja que ensina a juntarmos as nossas dores às dores imensamente maiores de Cristo. O sofrimento purifica-nos, lembra-nos que somos contingentes e possuímos limites, alcança bens espirituais para nós e para os demais. Diante do sofredor, o homem transborda alguns dos mais nobres e belos sentimentos: a misericórdia, a solidariedade, a compaixão, o amor… São eles que trazem o Céu à terra e aproximam-nos de Deus. Mas dificuldades virão. Como Tomás de Kempis escreveu na imitação de Cristo, se pensas que não aguentas com os sofrimentos desta terra, como pensas enfrentar os do purgatório. Mas ninguém pensa nele ou mesmo no Inferno. A felicidade tem de ser imediata, ainda que se perca a eterna…
P. José Victorino de Andrade
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[1] Ver nesta página alguns artigos sobre a filosofia utilitarista em https://aportesdaigreja.com/tag/utilitarismo/
Será que conseguiremos, seguir esse exemplo de Jesus sofredor? Para o comum ser humano existem coisas tão difíceis. Eu quero, mas serei capaz?
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