Um dos mais controversos filósofos e teorético-políticos recentes, Richard Rorty, representante do pragmatismo moderno, esquerdista e anticlerical,[1] pensou uma sociedade sem o concurso das religiões, com o amor ao próximo proveniente de uma espécie de “panteísmo romântico”.[2] Para Rorty, a solidariedade não deve fundamentar-se na dignidade do homem ou na visão deste como semelhante, doutrina cristã que considera tentadora e a ser evitada, mas deverá brotar de sentimentos, como motor para a ajuda aos estranhos, doloridos e humilhados.[3] Na sua visão, a antiga conceção de amor ao próximo partiu de um fanatismo paradoxal lançado por padres, mas deveria ser hoje provocado pelas histórias comoventes dos outros.[4] Esta tese reduz a possibilidade da caridade a uma espécie de perceção sentimental das dores alheias. Como se a crueldade deste mundo chegasse ao fim – alerta Arboleda Mora – com qualquer experiência literária, a partir do momento em que “os cruéis se transformem em pessoas amáveis ao sentirem ou experimentarem algo ao ler a literatura sentimental”.[5] Parece que estes exercícios de sentimentalismo não têm primado hoje pela eficácia, e talvez nunca conduzam a um mundo nem mais justo, nem mais humano, nem mais solidário, dadas as dificuldades em converter as estruturas de poder e as massas de modo eficaz e perene com esse tipo de estímulos, ou leituras.
Ao reduzir-se a verdadeira caridade a uma ONG, a qualquer ideologia política ou filosófica, a uma sensação, prestígio ou negócio, retiramos-lhe a sua força para encerrá-la num viveiro dominado por ideologias, sujeitas a lógicas de lucro e visibilidade, que exploram os mais variados sentimentos humanos para atrair a atenção, incidir politicamente, ganhar audiência ou vender notícias. Os agentes interesseiros e aproveitadores depressa aprendem a mexer com os mais variados afetos humanos a partir da desgraça alheia. Conforme alertava o falecido Cardeal Jean-Marie Lustiger, Arcebispo de Paris, “a força da emoção” é usada “para despertar a generosidade do público”, um entusiamo frágil, que logo “dá lugar à indiferença”.[6] Por vezes, com a mesma velocidade com que se muda o canal de uma televisão ou que se vira a página de uma revista ou de um jornal. A caridade não pode ser reduzida a um mero sentimentalismo em que as pessoas ficam tocadas a partir de estímulos exteriores, imagens e apelos mediáticos que a alguns mobilizam, a outros manipulam e tantos friamente ignoram. A caridade jamais presidirá a este mundo enquanto sentimento frágil e de fundo, despoletada no momento em que um agente externo desperta emoções súbitas e passageiras. Mas enquanto Amor, originário de Deus e original naquela sociedade inspirada pela Igreja fundada por Ele, caridade toda ela revestida daquelas características tão bem declinadas por São Paulo na sua primeira carta aos Coríntios (13, 4-8): paciente, prestável, humilde, desinteressada, justa, veraz, crente, esperançosa, perene…
Esse Deus Caridade –, incapaz de ser amado sendo invisível, se não for também amado naqueles que nos são visíveis, conforme a doutrina e exemplo que nos foram legados por Jesus, e tão característica dos escritos do Apóstolo S. João, tanto no seu Evangelho quanto nas suas cartas –, foi capaz de impulsionar a humanidade a um amor transformante e transformador, e de levar os homens e as mulheres de todos os tempos a uma generosa e dadivosa alteridade, à genuína caridade. Talvez por isso tenham nascido a partir da Igreja tantas instituições de solidariedade, como nenhuma outra cultura, instituição humana ou política à face da terra. Nem de longe! Pois enquanto muitos politizam os pobres e sofredores, e outros sensibilizam e manipulam a opinião pública ao expô-los, as instituições de solidariedade social de inspiração cristã, no amor a Deus e ao próximo, estão no terreno, sem mediatismo nem sentimentalismo, mas com muito mérito e arrojo! E parece-me que esta sociedade estaria provavelmente muito melhor, se voltasse ao primeiro amor, ao amor de Deus, e esquecesse o sentimentalismo de Rorty…
P. José Victorino de Andrade
____________________
[1] Conforme GUIGNON, Charles; HILEY David R. Richard Rorty: Contemporary Philosophy in focus. Cambridge: University Press, 2003. Ou mesmo as suas palavras em (RORTY & VATTIMO, Gianni. Il future della religione. Milano: Garzanti, 2005, p. 44)
[2] “[Panteismo romantico] è l’unica espressione di un senso di dipendenza che ci sia richiesto quando riconosciamo di fare parte di una totalità più ampia” (Ibidem. p. 85).
[3] Ver RORTY. Contingency, irony, and solidarity. New York: Cambridge University Press, 1995.
[4] Ver Id. Truth and progress. New York: Cambridge University Press, 1998.
[5] “La confianza de Rorty está en esperar que la crueldad llegue a su fin cuando los crueles se transformen en personas amables gracias a que sientan o experimenten algo cuando lean literatura sentimental” (ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2011, p. 16. Tradução minha).
[6] LUSTIGER, Jean-Marie. Como Deus abre a porta da Fé. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2007. p. 133.
Deixe uma Resposta