O humanismo renascentista colocou o indivíduo no centro, divinizando o homem e humanizando a Deus. Não só elevou autoridades temporais à altura de divindades, mas também poetas, escritores, artistas e mecenas. Nesse período, a interpretação dos textos ficou entregue a uma subjetividade alheia que dificilmente aceita uma verdade imutável. Esta liberdade na interpretação dos livros, mesmo os Sagrados, desdenhava de um poder competente e reservado, e a diminuição de autoridade da Santa Sé nesse e noutros domínios não tardaria a inserir o movimento protestante num contexto favorável. Igualmente propício para o surgimento de um novo paradigma político era o fim da filosofia política medieval e da sua conceção agostiniana, curiosamente enterrada por aquele que começou por ser um filho da ordem de Sto. Agostinho: Martinho Lutero.
Para esse novo paradigma político contribuiria Maquiavel. Ele propugnou que se “abandonasse uma lógica racional da justiça e da ética”, resultado de uma herança passada, mas que dominasse “a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei”.[1] De facto, Maquiavel via o binómio autoridade-povo, como uma luta constante entre aquele que deve coibir e liderar, e aqueles que não querem estar sujeitos a esse domínio prepotente. Nesta visão concreta, uma autoridade do alto não tem lugar e elementos pré e suprapolíticos não são considerados. “Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão)”,[2] o que significa que o seu pensamento levaria à obrigatoriedade de rever os fundamentos do poder. “Maquiavel mantém assim uma função diretamente secularizadora das estruturas da comunidade política e do novo Estado, afastando-o de qualquer tutela imperial e política e, inclusive, de toda pauta moral”.[3]
Comprometida com os ventos humanistas, a visão do homem tornar-se-ia entretanto pessimista, visto a partir de então como insaciável e tendente à revolta.[4] Não admira que Hobbes, mais tarde, tivesse acolhido essa visão e alicerçado a importância de um Estado leviatânico,[5] a fim de controlar e reger “os lobos”, e do futuro contrato social para pacificar e reunir os interesses alheios, ambos inerentes à teoria do Estado.[6] Concomitante à novidade maquiavélica, que idealiza pela primeira vez um Estado secularizado, absoluto, surge a visão teológica e antropológica de Lutero, que necessitará algumas vezes de fazer alianças e cedências ao poder político, sob o risco de não obter a hegemonia nas regiões em que a resistência à reforma ainda se fazia sentir, quer pelas raízes católicas romanas, quer pelas acirradas disputas teológicas e mais tarde armadas.[7] O nome de protestantes veio exatamente do protesto feito ao Imperador em 1529, por vários senhores da época (entre eles João da Saxônia e Felipe de Hesse, a quem Lutero autorizou amasiar-se com outra mulher, que não a esposa), apoiantes do monge agostiniano, adotando assim um nome histórico,[8] hélas, considerado para os seus seguidores como pouco ou nada pejorativo.
São “pelo menos quatro os contributos do pensamento luterano à formação do Estado absoluto como Estado forte: a posição do Estado como supremo garante da ordem; a falta de limites ao poder do Soberano; a neta separação entre o Príncipe e o povo; a Igreja como simples organização sobreposta ao Estado”.[9] As semelhanças entre o soberano de Lutero e o Príncipe de Maquiavel não são meramente cronológicas. O Príncipe, qual tirano, absoluto, cujos fins acabam por justificar ou mesmo absolver os meios, deve reger com a força do seu braço aquele povo marcado por uma visão pessimista relativamente à natureza humana, marcada pelo pecado. Ambos lançaram as bases para um Estado soberaníssimo, sem qualquer autoridade visível acima dele e sem qualquer vínculo moral, garante da ordem, se necessário, pela força e pela violência.[10]
P. José Victorino de Andrade
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[1] CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática., 2000. p. 512.
[2] Loc. Cit.
[3] “El proceso emancipador iniciado por Maquiavelo mantiene así una función directamente secularizadora de las estructuras de la comunidad política y del nuevo Stato, apartándolo de cualquier tutela imperial y pontifical e, incluso, de toda pauta moral” COELLO DE PORTUGAL, José María. La libertad religiosa de los antiguos y la libertad religiosa de los modernos. In: Revista de Derecho UNED, n. 7, 2010. p. 176 (tradução minha).
[4] “Machiavelli’s pessimistic view of human nature coms from his opinion that people are greedy, selfish, petty, dissatisfied, and disloyal and have no hope of redemption. They have infinite wants and no means to satisfy them, so they are continually frustrated and resentful. Their resentment is always directed at the ruler, whom they expect to make them happy, and they blame the government (or prominent people) when they don’t get what they want. People are vain, jealous, proud, and stupid in Machiavelli’s view” (SHELDON, Garrett Ward (ed.). Encyclopedia of Political Thought. New York: Facts On File, 2001. p. 194).
[5] Ver SHELDON Op. cit. e COELLO DE PORTUGAL Op. Cit.
[6] RIZZI, Armido. Laizità: Un’idea da ripensare. Verucchio (RN-It.): Pazzini, 2004.
[7] Ver ROPS, Daniel. A Igreja das Revoluções. São Paulo: Quadrante, 2003 e também CARULLI, Op. Cit.
[8] ROPS, Daniel. Op. Cit.
[9] “Sono, infatti almeno quattro i contributi del pensiero luterano alla formazione dello Stato assoluto come Stato forte: la posizione dello Stato come supremo garante dell’ordine; la mancanza di limiti al potere del Sovrano; la netta separazione tra Principe e popolo; la Chiesa come semplice organizzazione sottoposta allo Stato” CARULLI, Ombretta F. A Cesare ciò che è di Cesare, a Dio ciò che è di Dio: Laicità dello Stato e libertà delle Chiese. Milano: Vita e Pensiero. 2010, p.19 (tradução minha).
[10] CARULLI, F. Op. Cit.
“As semelhanças entre o soberano de Lutero e o Príncipe de Maquiavel não são meramente cronológicas.” Verdade!!!
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