A primeira metade do séc. XX ficaria marcada por Repúblicas que, colidindo com o poder espiritual, quiseram levar adiante o processo de secularização e dessacralização das suas instituições, por vezes, pela perseguição. A Igreja não queria ver limitada a sua ação, nem poderia aceitar o constrangimento de ver a ingerência política tocar em princípios inalienáveis, e por isso reagiu, em geral, fortemente. Mas o tsunami das mudanças económicas, legislativas e políticas não era fácil de deter. Vários abusos de poder e perseguição anticlerical caracterizaram algumas das Repúblicas instauradas, que se nutriam de filosofias naturalistas, e o laicismo radical disseminava-se por todo o ocidente. Pio XI, na Quas primas, chamar-lhe-ia: “peste que infetou a sociedade dos homens” e increpa os “seus erros e nefastos empreendimentos”, ao sujeitar a Igreja “aos poderes civis e ao arbítrio permissivo dos príncipes [governantes] e magistrados” (AAS 17 [1925], p. 604-605)[1].
A Quas primas institui a solenidade de Cristo Rei e reafirma a centralidade de Deus, em detrimento do crescente naturalismo e inclemente anticlericalismo. A Igreja pretendia lembrar quem é o Senhor dos senhores, o Rei dos reis, diante do qual todos terão de prestar contas. Mais tarde, os padres do Vaticano II na mensagem aos governantes asseveram o mesmo: “Só Deus é grande. Só Deus é o princípio e o fim. Só Deus é a fonte da vossa autoridade e o fundamento das vossas leis”. Pedem também para proclamar em liberdade o Evangelho, que torna os “cidadãos leais, amigos da paz social e do progresso (AAS 58 [1966], p. 10-11)[2]. Fazia-se frente àquela tentação descrita por Rawls como: “o intoxicante orgulho de governar”[3].
Pe. José Victorino de Andrade
Artigo adaptado da tese de doutoramento do mesmo autor.
Aportes da Igreja à Construção de uma Sã Laicidade. Medellín: UPB, 2013.
________________________
[1] “[…] pesti, quae societatem hominum infecit […] quem vocant, eiusdemque errores et nefarios conatus […] deinceps civili potestati subiici arbitrio que principum ac magistratuum fere permitti; ulterius ii progredi, qui naturalem quamdam religionem, naturalem quendam animi motum pro divina religione substitui oportere cogitarent” (tradução minha).
[2] “Dieu seul est grand. Dieu seul est le principe et la fin. Dieu seul est la source de votre autorité et le fondement de vos lois. C’est à vous qu’il revient d’être sur terre les promoteurs de l’ordre et de la paix entre les hommes. […] laissez-nous répandre partout sans entraves la ‘bonne nouvelle’ de l’Evangile de la paix […] l’Eglise forme pour vous des citoyens loyaux, amis de la paix sociale et du progrès” (tradução minha).
[3] “[…] the intoxicating pride of ruling” (tradução minha). RAWLS, John. The law of peoples. 2a. ed. Cambridge: Harvard University Press, 2000. p. 47.
Deixe uma Resposta