Parece que o amor a Deus e o amor ao próximo seriam suficientes para que reinasse a paz e a concórdia no mundo. Os primeiros cristãos viveram essa experiência como nos mostra o livro dos Atos dos Apóstolos (2, 42-47), tornando-se uma comunidade modelo que crescia dia-a-dia. O próprio São Paulo resume o Decálogo no amor: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei” (Rm 13, 8-10).
Porém, este preceito não exclui qualquer outra forma de lei, limitando-se a prescrever como cumpri-la em plenitude, pois a liberdade é compartilhada pelos demais na medida em que o homem vive em sociedade e é um ser sociável, sendo indispensável ao ser contingente e concebido no pecado um conjunto de códigos que tornem essa convivência mais justa e próspera e, para este efeito, também a lei humana tem um papel fundamental. Existe, entretanto, um conjunto de leis na ordem natural das coisas, e não é pelo fato de serem promulgadas ou suprimidas que deixam de estar subjacentes ao homem. Por exemplo, não é por haver uma lei que criminaliza o homicídio, que se torna proibido ao homem matar o seu próximo. Antes de haver a lei positiva, ou seja, aquela deliberada e promulgada pela autoridade temporal, existe aquela moral inscrita no coração humano que é a lei natural. E esta é acessível a todos, conforme São Paulo: “Com efeito, quando há gentios que, não tendo a Lei, praticam, por inclinação natural, o que está na Lei, embora não tenham a Lei, para si próprios são lei. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência tal como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou defendam” (Rm 2 14-15)
Entretanto, a lei natural é insuficiente para todos os casos, pois, se bem que sugira ao homem a máxima “pratica o bem, evita o mal”, não determina muitos fatores que são necessários para a comunidade a fim de garantir o bem-comum das pessoas através do reconhecimento e defesa dos direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública, cabendo este encargo à lei civil.1 Assim sendo, as necessidades práticas de governo de um determinado grupo, nação ou as relações internacionais poderão exigir um conjunto de disposições concretas que auxiliem e promovam a ordenação das coisas. Por exemplo, dentro de uma empresa, no trânsito de uma cidade, a gestão ou planeamento territorial de um determinado país, etc. Estas leis não gozam da plena infalibilidade e confiança que se deposita apenas na lei divina e consequentemente na lei natural. Porém, na medida em que a lei positiva humana participa e se baseia nestas, torna-se provida de uma autoridade que pertence à ordem estabelecida por Deus e que favorece o bem comum. É dentro deste âmbito que o direito assume um caráter inviolável, impondo uma obrigação moral fundamental, conforme o ensinamento do Apóstolo:
Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus, e os que se opõem receberão a condenação. É que os detentores do poder não são temidos por quem pratica o bem, mas por quem pratica o mal. Não queres ter medo da autoridade? Faz o bem e receberás os seus elogios. De facto, ela está ao serviço de Deus, para te incitar ao bem (Rm 13, 1-5).
Pe. José Victorino de Andrade
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[1] “Civilis legis munus est in tuto ponere commune hominum bonum per agnitionem et defensionem iurium fundamentalium, atque pacis et publicae morum honestatis promotionem”. In: CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI. Instructio de observantia erga vitam humanam nascentem deque procreationis dignitate tuenda. AAS 80 (1988) 98. A mesma ideia encontra-se na Declaração Dignitatis Humanae, n. 7.
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