Os milagres do acaso

É curioso ver como se está progressivamente a dessacralizar tudo aquilo que possa tocar em Deus provendo-se para tal de uma estulta argúcia. Muitos doutrinam, mas não ensinam, pelo menos no sentido agostiniano em que o mal não é passível de tão nobre vocação, visando sobretudo aqueles que consideram as coisas com superficialidade, habituados a engolir sem mastigar toda a mixórdia com que os empanturram. Sucedem-se imagens, slogans, notícias e propagandas a uma velocidade que raras vezes oferece tempo para pensar, aprofundar, optar com liberdade e agir em consequência. E dentro dessa modalidade, surgiu uma irreverente capacidade de falar das coisas de Deus sem qualquer referência ao Divino. Isto é, referir-se aos efeitos omitindo a causa, qual meio sem princípio nem fim, acaso sem caso, coincidência sem Providência.

Procure na internet quantas vezes aparecem notícias que mencionam milagres… e pasme-se. Centenas de milhares… Tal pessoa salvou-se por milagre, o carro não atingiu o pedestre por milagre, o paciente ou o acidentado não morreu por milagre… múltiplas referências ao dito cujo encontram-se ainda abundantemente ligadas aos sucessos desportivos, ao campo da ciência e das novas descobertas, das economias que se recuperam… O título cativa, aumenta audiências e entradas em sites, mas não é possível encontrar qualquer rastro de Deus no seu desenvolvimento. São milagres naturais, não sobrenaturais. Os novos milagres do séc. XXI produzem-se e reproduzem-se em abundância, mas sem Deus. Ele talvez apareça quando for o caso de dar uma explicação plausível, naturalista, científica, e então convencemo-nos que não foi preciso uma ação dos Céus, pois encontrámos qualquer explicação na terra. E se antes a problemática redundava-se em circunscrever Deus a uma estratosfera sem contacto com a atmosfera, agora pondera-se que o melhor é criar uma nova divindade, poderosa, extremamente eficaz, e despedir aquele Deus que impede os prazeres humanos e que não faz milagres à medida das nossas necessidades e carências. Um impostor tomou o lugar de Deus: o acaso… Tudo passou a existir por ele, o novo criador pelo qual o criado surge de uma feliz circunstância entre biliões e biliões de possibilidades, que se combinaram por uma feliz coincidência. A vida torna-se uma contingência entre quase infinitas que por um conjunto de fatores irrompeu de um fortúnio ininteligível, originando o novo milagre da vida e do homem. Milagre considerado à vista dessa nova terminologia, enciclopedicamente ateia, semanticamente esvaziada de Deus, dessacralizada à vista dos homens. No ocaso deste mundo parece não ser por acaso que fazem caso de destronar aquela prostituta que representava para a Revolução Francesa a deusa razão, coroada há mais de dois séculos na Catedral de Notre Dame por uma turba que desprezava a religião, pois essa desgraçada ainda poderia conduzir a Deus. O novo deus acaso, desordenado, caótico, coincidente, inusitado, surpreendente é agora adorado embevecidamente pelos apologistas de uma causa e de um destino cego. Tudo passou a ser fruto do acaso…

Para dizer a verdade, ainda há um momento em que muitas vezes lembramos Deus. A nossa ousadia consegue ir mais longe. Diante das catástrofes e dos sofrimentos, sem o suave queixume que caracterizou a prece de tantos cristãos aflitos, mas com a revolta de quem acha que Deus está a ser incompetente, interpelamo-Lo onde estava diante de tantas calamidades que nos assolam. Se ele existe, como é possível que tal acontecimento, enfermidade ou morte pudesse acontecer? Diante disso, ninguém pensa no acaso… ninguém o culpa, ele oculta-se diante da Divindade que permitiu tamanho sofrimento. Não será perigoso despojarmos Deus de tantos bens e da criação, tirando-lhe também a prerrogativa de Justo Juiz por quem seremos julgados para colocá-lo no banco dos réus condenando-O pelos males?

Afinal, onde está Deus? A resposta talvez careça de uma nova pergunta: Quer na nossa vida, quer na sociedade, onde é que nós o pusemos?

Pe. José Victorino de Andrade

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