
Entre os termos mais devassados semanticamente, para corresponder à tirania do politicamente correto e às novas ideologias, está o matrimónio. Daqui a pouco, se não interrompermos este processo que civilizacionalmente representa um retrocesso, a sociedade ocidental empobrecerá a noção do que tal significa, uma vez que se vai perdendo não só a sua estabilidade, como a sua essência e o seu fim primordial. Os seus ritos foram reformulados e os seus protagonistas cambiados. Talvez não exista outra instituição tão importante e universal, que faça parte do património imaterial da humanidade, meio original e originário da nossa existência, e que tenha sido tão prejudicada. Pois, ainda que procurássemos nas mais variadas civilizações, das mais avançadas às mais rudimentares, não encontraríamos qualquer uma que tivesse desvalorizado a instituição familiar ou que a tivesse substituído por outras formas. Estaria fadada ao fracasso e ao minguamento populacional e civilizacional. Tal como seria difícil encontrar uma comunidade, por muito primitiva que fosse, que não possuísse um ritual próprio para o momento em que o jovem e a donzela abandonam a sua família originária, para se unirem num só corpo, num só habitat, numa nova família, que gerará descendência, iniciará um novo ciclo, uma nova geração, perpetuando o género humano.
Parece que só os homens de hoje, valorizando a líbido, o hedonismo e o individualismo acima das instituições humanas e da ordem natural das coisas, resolveram prescindir de qualquer ritual ou forma de compromisso para juntarem os paus da barraca e passarem a coabitar. Além de prescindirem da complementaridade dos sexos, passando a considerar matrimónio a junção entre dois homens ou duas mulheres, daqui a pouco, a julgar pelo “andar da carruagem” ideológica, entre seres humanos e animais. Isto revela até mesmo um desconhecimento absoluto da verdade contida no próprio termo. Matrimónio vem da junção de duas palavras latinas: mater, tris (mãe) e monium que significa uma determinada qualidade ou estado. Indica a maternidade. No plural, remete para o conjunto das esposas.[1] Pretender açambarcar outras realidades para o matrimónio, como outro tipo de uniões, indica desde logo uma traição à origem da palavra e à verdade histórica e social que aponta para a maternidade daquela que é desposada pelo homem (in matrimonium aliquem ducere).[2] De acordo com alguns estudiosos das etimologias, o matrimónio não remete para uma simples união jurídica, como hoje querem fazer parecer, mas a elevação da mulher a mater familias, esposa e mãe legítima, com todos os direitos e deveres, um novo estado de vida que significava também para a mulher casada a passagem da responsabilidade que cabia ao pai para a responsabilidade que caberia a partir de então ao esposo. A palavra matrimónio remete ainda para a capacidade que só a mulher tem, com a cooperação do varão, de conceber e dar à luz. [3] Uma realidade física e fisiológica que se mantém.
Muitas vezes, a Igreja é acusada de intransigência ou de arcaísmo na defesa de certas verdades, como se estas tivessem um prazo de validade, e as de ontem tivessem de deixar de sê-lo hoje. Entretanto, como tantas coisas boas que a Igreja purificou, mas não abandonou, a Igreja acolheu o matrimónio entre o homem e a mulher que existiu desde sempre na história das civilizações, elevado a um sacramento por Cristo, e pensou um ritual sem o qual não vivem os homens, a partir da Palavra de Deus, que salienta o carácter sagrado e perpétuo do vínculo, tal como a abertura à vida, expresso na promessa realizada pelos nubentes diante de Deus e diante dos homens. Mas tal como os homens optaram por desconsiderar verdades, decidiram também reduzir as promessas de fidelidade perpétua a temporária, registada num papel que se pode desconsiderar quando alguém julgar conveniente. A palavra de honra dada pelos homens em tempos históricos, levada até à morte se necessário, acabou num mundo sem honra, onde qualquer papel assinado tornou-se uma questão de interpretação legal, advogados e tribunais, passível de ser alterado ou rasgado.
O matrimónio não é pertença nem invenção do Cristianismo. Faz parte da criação, pois Deus fê-los varão e mulher, que se complementam, formam um só, união essa que é capaz de gerar. O Homem, imagem e semelhança de Deus, lembra no contexto do matrimónio a família Trinitária, o Pai que gera o Filho e o amor de onde procede o Espírito Santo. Um amor que é fecundo, de onde procede um terceiro, que na relação entre o marido e a mulher concretiza-se nos filhos, um amor que tem, na ordem das coisas criadas, capacidade de gerar novas criaturas. Assim, o dom recebido dos próprios pais é doado às próximas gerações. Nas bodas de Canaã, Jesus participa de um casamento. Ele já existia, como existiu desde sempre em todas as civilizações, mas a partir desse momento o Senhor confirma-o, até elevá-lo a um sacramento, dando-lhe o carácter definitivo na forma expressa pelo Verbo Encarnado: “Não separe o homem o que Deus uniu”. É a unidade dos distintos, que lembra a definição de Calcedónia. O homem e a mulher não são iguais, a não ser em dignidade. “Contrariamente àquilo que afirma a ideologia do gender, a diferença dos dois sexos é muito importante”: Deus subtraiu ao homem a possibilidade da má solidão, permite a ambos ajudarem-se mutuamente, uma aliança conjugal, só possível na complementaridade, na qual “Deus inscreveu a ‘lógica’ do seu amor. […] Infelizmente, o pecado substitui a lógica do amor, do dom de si mesmo com a lógica do poder, do domínio e da própria afirmação egoísta”.[4] E conforme a Amoris Laetitia do Papa Francisco: “o ideal matrimonial com um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade” (n. 33)
Dos povos hindus, às tribos do coração da África e da Amazónia, do norte ao sul e do oriente ao ocidente, a história da humanidade revela-nos que sempre existiram rituais próprios, religiosos ou comunitários, de grande a mediana complexidade e duração, que antecederam a união física e familiar estável de um homem e de uma mulher. Coube aos nossos dias dessorar uma das instituições mais antigas do mundo, ignorar a sua realidade e identidade, abandonar a ritualidade, reduzir tudo a sentimentos e a tiranias subjetivas, fatores que levarão, sem dúvida, à diminuição da nossa espécie , pelo menos em algumas regiões onde estas ideologias são mais fortes, tanto qualitativamente quanto quantitativamente. Um dos maiores desastres da humanidade começou a partir do momento em que legalmente se abriram as portas a alguns que, para viverem egoisticamente as suas vidas e os seus amores, negam a estabilidade e a complementaridade familiar, a transmissão da vida e o amor aos filhos gerados, delapidando a célula base social: a família, composta normalmente por um homem, uma mulher, e os filhos. O Papa Francisco adverte-nos que, “como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer” (Amoris Laetitia, 34).
P. José Victorino de Andrade
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[1] Matrimonium, ii. In: DICIONÁRIO essencial Latim/Português. Porto: Porto Editora, 2001. p. 201.
[2] Loc cit.
[3] Quanto à etimologia, e a algumas ideias deste parágrafo, ver um estudo muito interessante em: http://etimologias.dechile.net/?matrimonio
[4]A FAMÍLIA: O trabalho e a festa. Catequeses Preparatórias VIII Encontro Mundial Famílias, Milão 2012. Coimbra: Gráfica de Coimbra2, 2002. p. 23-24.
“Cientista afirma: casar é melhor do que só morar junto! ”
https://www.msn.com/pt-br/estilo-de-vida/relacionamento/cientista-afirma-casar-%C3%A9-melhor-do-que-s%C3%B3-morar-junto/ar-BBW2m83
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