Certamente já ouviu alguém dizer: “eu cá tenho a minha fé!”, expressão que normalmente não se restringe ao crer sem ver (Jo 20, 29) a seu modo, mas que expressa a vivência individualista da fé – quer no âmbito da prática cristã, da oração, dos sacramentos e da moral –, como se a fé permitisse um Menu a la carte no qual escolhemos aquilo que nos interessa e que gostamos mais. Trata-se, antes de mais, de uma fórmula incongruente, até algo boçal e pouco inteligente, em primeiro lugar porque criamos sem nos darmos conta uma religião própria, e talvez só Deus tenha autoridade para tal, e como nós não somos deuses, velha tentação do tempo dos nossos primeiros pais (Gn 3, 5), não podemos inventar a nossa própria fé. Depois, porque qualquer prática necessita constância e perseverança, para ser verdadeiramente séria e verdadeira: fazer exercício físico apenas quando tenho vontade, não faz de mim um desportista. Da mesma forma, ir à Igreja quando tenho vontade, não faz de mim um crente. Por analogia, também não existe um estudante universitário que não vai à Universidade e dispensa os seus estudos e trabalhos de casa, tal como não pode haver um Católico que não vai à missa e não prolonga a vida da Fé na igreja doméstica, no seu lar, através da oração e da leitura orante da Palavra. Por fim, construir uma moral própria, seria como ser abordado por um agente da lei e dizer que não respeitamos as regras de circulação ou quaisquer outras normas legais porque nós temos as nossas próprias, e aquilo que pertence ao código de trânsito ou a determinada legislação é rejeitado por nós com a desculpa de termos realizado a escolha das leis que nos convêm e das quais gostamos mais. Se não fossemos parar a uma prisão, certamente seriamos internados num Hospital Psiquiátrico…
Nós não faltamos ao trabalho, senão perdemos o emprego. Durante 36 a 40h por semana trabalhamos, e não dizemos ao nosso patrão que não fomos trabalhar porque estávamos cansados, ou que tínhamos visitas em casa, ou que tínhamos de fazer o almoço, ou tomar conta do filho ou do netinho… mas com muita facilidade usamos essas mesmas desculpas para faltar à prática da Fé, que só nos exige cerca de 1h, uma vez por semana. Porquê? Porque temos o nosso coração nas coisas materiais, e não nas espirituais. Fazemos tudo para não perder dinheiro, e não fazemos quase nada para ganhar o Céu. Embora a única certeza que todos nós temos é que morreremos, e desta terra não levaremos nada a não ser os bens espirituais. Mas estamos cegos, com “a minha fé”, que se tornou ‘a minha venda’ para obnubilar a vista e não querer ver mais além nem ter o trabalho de ser coerente e viver a proposta de Deus. A Fé vem Dele. Não é uma criação minha. Não é capricho. Não é pertença. É um dom, e enquanto tal, recebeste de graça, dai de graça (Mt 10, 8). Nenhum homem vive exclusivamente para si mesmo, mas pertence a uma comunidade, vive em sociedade, insere-se em determinada realidade temporal. A sociedade espiritual que reúne os batizados chama-se Igreja; o seu ensinamento Magistério; aquilo que nos foi transmitido desde os primeiros tempos, Tradição; aquilo que nos liga a Deus, Religião; o dom que recebemos pelo qual cremos nas realidades invisíveis, Fé. Se nos desligarmos de tudo isto, ficamos relegados ao encerramento nas trevas do egoísmo, do hedonismo, do subjetivismo, do relativismo. A ditadura desta mentalidade invadiu e pervadiu o homem pós-moderno. A possibilidade de separar o amor da verdade, torna-o permissível aos cambiantes sentimentos,[1] desestruturando a hierarquia razão-vontade-sensibilidade, para tornar esta última, antes submissa, agora tirana absoluta do nosso ser. Já não é a inteligência que ordena à vontade, mas a ditadura das minhas paixões, muitas vezes desordenadas. Assim, se não tenho vontade, se “não me apetece”, pouco interessa que aquele seja um bem maior, eu inclino-me diante dos meus caprichos e dou vazão ao meu ego. E julgamos nós que somos livres, quando acabamos prisioneiros do nosso mundanismo, escravos do sentimentalismo.
A Carta Encíclica Lumen Fidei, iniciada por Bento XVI e terminada pelo Papa Francisco, revela uma grande sabedoria prática nesta matéria, no sentido em que esclarece que a verdade não pode ser individualizada, ou deixa de sê-lo, se cada um tiver a sua, e como devemos superar o medo de uma Verdade que não é propriedade nossa, mas que existe desde sempre, e não se impõe senão de forma amorosa, libertando-nos do erro e do individualismo: “daqui resulta claramente que a fé não é intransigente […]. O crente não é arrogante; pelo contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e possui” (n. 34). Só com esta humildade e abertura eu posso sujeitar-me a aprender, a conhecer Deus, ao saber e à autoridade de quem me transmite, a um encontro com Ele, a deixar-me transformar, de forma a não reduzir a fé a “um facto privado, uma concepção individualista, uma opinião subjectiva”, mas escuta e transmissão, pois àquele que se deixou assim transformar “abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os seus olhos” (n. 12). A verdadeira fé é luz, para a nossa vida e dos nossos irmãos, oposta às trevas do egoísmo e do subjetivismo. Ela “brilha para as pessoas de todos os lugares […]. Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível” (n. 38). Por isso mesmo, “é impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o « eu » do fiel e o « Tu » divino, entre o sujeito autónomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao « nós », verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja. […] quem crê nunca está sozinho; e, pela mesma razão, a fé tende a difundir-se, a convidar outros para a sua alegria. Quem recebe a fé, descobre que os espaços do próprio « eu » se alargam, gerando-se nele novas relações que enriquecem a vida. Assim o exprimiu vigorosamente Tertuliano ao dizer do catecúmeno que, tendo sido recebido numa nova família « depois do banho do novo nascimento », é acolhido na casa da Mãe para erguer as mãos e rezar, juntamente com os irmãos, o Pai Nosso” (n. 39).
P. José Victorino de Andrade
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[1] “É conhecido o modo como o filósofo Ludwig Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de subjectivo, impossível de propor como verdade válida para todos. De facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos” (Lumen Fidei, n. 27).
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