Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16, 15). Fiéis ao mandato de Nosso Senhor Jesus Cristo, os Apóstolos foram transmissores da Palavra Divina, recolhida e colocada por escrito pelos Evangelistas – o Novo Testamento –, que adicionada à revelação feita por Deus antes da vinda do Messias – o Antigo Testamento –, forma o conjunto dos 73 Livros Sagrados aos quais damos o nome de Bíblia. Desde o início, “a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras a par com o próprio Corpo de Cristo” (Dei Verbum, 21). Os primeiros discípulos “eram assíduos ao ensino dos apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2, 42). Era importante a conservação dos Livros Sagrados, que utilizados na liturgia, no ensino e na pregação, transmitiam como outrora muitas vezes e de muitos modos havia falado Deus por meio dos profetas, e como nos nossos dias, falou-nos por meio do Filho, Jesus Cristo (Hb 1, 1-2). Tornou-se fundamental conhecer bem as Escrituras, estudá-las, transmiti-las, vivê-las. Os Padres da Igreja procuraram fazê-lo, como se comprova nos seus sermões e escritos. É verdade que nesse tempo a Escritura não era acessível a todos, quer pela incompreensibilidade da língua, a quase inexistência de cópias completas dos livros sagrados, e a contingência histórica com intermitentes guerras e perseguições. Mas os poucos escritos eram valorizados. Santo Agostinho, a partir de alguns trechos das Epístolas de São Paulo, não deixou de estudar a Escritura e deixar-se tocar por ela. Toma e lê! – a voz celestial de uma criança fez com que tomasse uma passagem de São Paulo, que iluminou a sua existência e completou o seu processo de conversão
Contemporâneo de Santo Agostinho, o Papa São Dâmaso confiou a São Jerónimo a tradução da Sagrada Escritura para a língua do vulgo, o latim, versão que recebeu o nome de Vulgata pois era a língua mais falada naqueles países do Oriente e do Ocidente que estiveram sob o jugo do Império Romano. Também na mesma época, vários Concílios da Igreja decidiam o conjunto dos livros que deveriam constar no Cânon das Escrituras, isto é, aqueles que eram considerados inspirados por Deus e que constituem hoje os 73 livros da Bíblia Católica. Essa versão que permanece até aos nossos dias, (embora revista a pedido de Paulo VI, a Nova Vulgata), atravessou os séculos, e seria copiada heroicamente por monges abnegados e decorada por graciosas iluminuras, num período em que ainda não existia a imprensa e as cópias eram realizadas à mão, letra por letra, palavra por palavra, capítulo por capítulo. Hoje, com letra pequena, impressa, as bíblias passam frequentemente as 2000 páginas. Podemos imaginar o esforço hercúleo e o amor desses heróis da cultura e da fé anónimos, que trabalhavam e rezavam. Os monges copistas não copiaram somente a Bíblia, e devemos a eles a sobrevivência de muitas obras do passado, inclusive de filósofos anteriores à vinda de Cristo, até mesmo os Árabes.
Mas a Igreja sabia que era preciso levar mais além a epopeia de transmitir o Evangelho a toda a criatura. Antecedendo em muitos anos as chamadas gerações da imagem, e sabendo da importância que esta tem para todas os povos e culturas, a Igreja Católica sempre se serviu de obras artísticas como meio de catequizar o Povo. Ninguém ficava excluído, pois através de uma arte que ainda não conhecia o abstrato (portanto, não estava reservada a elites monetárias ou intelectuais, apreciadores ou excêntricos), a Igreja expressava assim em contornos sóbrios e belos as cenas bíblicas. Das mais pequenas capelas às grandes Catedrais, a Idade Média foi pródiga em abrir as portas do templo e do conhecimento a pobres e a nobres, e transpor a história da fé e da salvação em didáticas pinturas, esculturas e vitrais que poucos ou nenhuns operários ou máquinas modernas conseguem repetir ou reproduzir hoje.
Imagens vivas e exemplos preclaros do que pregavam, santos e dedicados missionários, levaram a Palavra aos quatro cantos da terra. Palmilharam milhares de quilómetros sem os meios de transporte de hoje, por locais perigosos e inóspitos, por terras desconhecidas. “Fides ex auditu”, a fé vem da escuta, conforme São Paulo (Rm 10, 17). Era preciso haver quem fosse enviado para anunciar a Cristo, uma vez que “a fé surge da pregação, e a pregação surge pela Palavra de Cristo” (Loc cit). E sem dúvida que não bastava reproduzir belas pinturas ou pronunciar elevadas palavras, mas o exemplo de uma vida que arrastaria consigo tantos outros para os caminhos da santidade. Ou até mesmo ao martírio, imitação de Cristo até ao derramamento de Sague, como semente, irrigação e crescimento de novos cristãos. São Cirilo e São Metódio, apóstolos dos povos eslavos, elevados por São João Paulo II a padroeiros da Europa com São Bento, entre outros santos, traduziram a Sagrada Escritura para a língua daqueles povos. Das palavras aos atos, da arte à missão, não há dúvida em que houve tempos, nas palavras de Leão XIII na Immortale Dei, nos quais a “filosofia do Evangelho governava as cidades”, e a “sabedoria cristã penetrava” os mais variados âmbitos da sociedade, unindo-se o “sacerdócio e o império pela concórdia e a conjugação amiga dos ofícios” (ASS 18 [1885], p. 169).[1]
Seria muito básico e rude acusar simplesmente a Igreja de manter os povos na ignorância relativamente às Escrituras. O desconhecimento da História e a acusação barata e hipócrita, além de certa reescrita ideológica, levariam a isso. Como se Martinho Lutero fosse o grande iluminado da história a valorizar a Escritura. Se a Bíblia chegou até ele, deve-se à Igreja Católica, que não só conservou e copiou os livros, como preparou Lutero filosófica e teologicamente formando-o para a pregação do Evangelho como monge Agostinho e presbítero. E se houve uma divulgação maior de livros da Escritura a partir do Séc. XVI, sem dúvida que não podemos deixar de colocar culpas maiores em Johannes Gutenberg, inventor da imprensa e falecido poucos anos antes de Lutero nascer. Partiu do inventor germânico uma Bíblia que recebeu o seu nome e que consta ser o primeiro livro impresso. Bíblia católica, diga-se de passagem, diferente da protestante. Ao protestantismo que se seguiu a Lutero devemos, isso sim, a diminuição dos livros da Sagrada Escritura de 73 para 66, e uma interpretação subjetiva das Escrituras que leva a que cada denominação acolha a sua própria tradução, por sua vez pregada por aqueles que a interpretam a seu modo, multiplicando as teses e as opiniões ao inverosímil, repetindo ad nauseam o livro que o pastor sente maior conforto e preparo para comentar. Quem leu o tão recente e já clássico livro de Scott Hahn, O Banquete do Cordeiro,[2] teve possibilidade de verificar como o autor, ex-pastor, elogia o modo como a Igreja Católica, na sua liturgia, ao longo do ano, lê os livros da Sagrada Escritura do primeiro ao último, coisa que o convertido norte-americano contou a partir da sua própria experiência não se fazer nos templos evangélicos, uma vez que apenas são lidos os textos a critério e preferência do responsável pela pregação. Muitas vezes, sempre os mesmos… conforme conveniência e conivência. É por isso um mito que os protestantes valorizam mais as Sagradas Escrituras do que os católicos, e muitos engoliram esse sapo, até padres…
A Bíblia é hoje o livro mais traduzido em todo o mundo. Se o Catolicismo é a maior de todas as religiões cristãs, com 1,2 bilhões de membros, parece muito claro qual é o seu livro de cabeceira e a leitura que é realizada em cada celebração litúrgica. O protestantismo histórico ronda os 228 milhões.[3] Quem tem levado a Sagrada Escritura a tantos povos e nações e quem fez dela o livro mais traduzido e conhecido em todo o mundo? Que a revalorização e resgate de Lutero e a reescrita da sua história, não ofusque tudo o que a Igreja historicamente realizou pela divulgação da Palavra, a partir do momento em que recebeu esse mandato do próprio Senhor Jesus. A sola scriptura, princípio protestante segundo o qual a Bíblia tem a primazia e a centralidade, existe com maior equilíbrio desde o início da História da Igreja Católica, que a pregou e levou aos quatro cantos do mundo e dispôs desde sempre nas suas celebrações como preparação para receber o próprio Corpo e Sangue de Cristo na Eucaristia. Entretanto, o próprio catolicismo não se considera a religião de um livro, mas de Jesus que fundou a sua única Igreja e outorgou responsabilidades a Pedro, hoje, o Papa Francisco.
Nos nossos dias a Bíblia é um livro acessível, tanto em papel quanto em formato multimédia. Procura-se uma passagem ou um livro com facilidade pela internet, que apresenta várias versões católicas e não só. As editoras publicam os vários formatos a preços acessíveis. Se os católicos de hoje não conhecem as Sagradas Escrituras, ou conhecem-nas menos e pior do que noutros tempos e séculos em que o acesso à Palavra de Deus era mais difícil e inacessível, deve-se a outras fatores, que não caberiam neste artigo, mas que deixo ao critério do leitor. Só não tem sentido condenar historicamente a Igreja Católica nem canonizar Lutero por aquilo que os católicos relapsos em matéria bíblica são hoje…
P. José Victorino de Andrade
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[1] Fuit aliquando tempus, cum evangelica philosophia gubernaret civitates; quo tempore christianae sapientiae vis illa et divina virtus in leges, instituta, mores populorum, in omnes reipublicae ordines rationesque penetraverat […] cum sacerdotium atque imperium concordia et amica officiorum vicissitudo auspicato coniungeret (tradução minha).
[2] HAHN, Scott. O Banquete do Cordeiro: A Missa Segundo Um Convertido. Cleófas; Loyola, 2014.
[3] Dados numéricos recolhidos da Wikipedia.
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