Influenciado por velhas tendências totalitaristas, o Estado poderá ter a tentação de subordinar a Igreja e açambarcar uma realidade que não é pertença de um Governo, mas dom de Deus para a Humanidade. A Igreja, Corpo Místico cuja cabeça é Cristo e cujos membros são compostos pelo Povo de Deus, é uma sociedade visível e espiritual, e deve guardar enquanto tal um carácter próprio e autónomo. Ela sempre peregrinou neste mundo no meio de dificuldades e perseguições, incompreensões e tentativas de instrumentalizações. Atualmente, é verdade que muitos poderes temporais procuram não chocar diretamente com Ela, visando ganhar espaços e relegar a religião para um plano secundário, privado, avançando assim com secularização da sociedade. Mas o Homem depende ainda, e muito, das instituições religiosas, quer no plano espiritual, quer social. As próprias igrejas de cunho cristão, ainda que não regurgitem de fiéis, contêm pastorais e ações sociais importantes para as comunidades. Ainda que os potentados quisessem apoderar-se delas, ou substitui-las por ações públicas, nunca poderiam assumi-las por inteiro nem vir a substituir a atividade religiosa.
O Estado, na verdade, estará a abusar e extrapolar o seu poder no momento em que pretender materializar o homem e a sua finalidade sobre esta terra. Fazer uma doutrina a esse respeito, ou agir-legislar enquanto tal, excede qualquer razoável competência do poder público. Ele não tem a capacidade de ser salvação ou de garantir a felicidade absoluta aos homens. Por isso, deverá estar aberto a quem o completa e com ele coopera, reconhecendo os limites e a impossibilidade de se preencher totalmente a si mesmo e satisfazer todas as exigências sociais e, sobretudo, espirituais dos homens. Na medida em que as religiões forem valorizadas e apoiadas, e tiverem respeitada a sua autonomia, poderão então colaborar com maior eficácia na sociedade e dar o seu específico contributo na edificação do Bem Comum. Um regime confessional conduziria a privilégios exclusivos para aqueles que comungam dos mesmos interesses, pois não possui como objeto os que mais necessitam, mas os que mais comparticipam. Ademais, como dizia o então cardeal Ratzinger: “onde a política quer ser redenção, ela promete demasiado. Onde pretende fazer a obra de Deus, não se torna divina, mas demoníaca”.[1]
Conforme explicava Bento XVI a este respeito, “a não-confessionalidade do Estado, que é uma não-immixio do poder civil na vida da Igreja e das diferentes religiões, como na esfera do espiritual, permite que todos os componentes da sociedade trabalhem juntos ao serviço de todos e da comunidade nacional”.[2] O devido equilíbrio encontra-se naquele poder temporal que evita qualquer extremismo em matéria religiosa, seja ele a manipulação e instrumentalização da Religião ou o desprezo e abandono das Instituições religiosas. Para o Papa Francisco, a “identidade cristã, longe de obstaculizar a sã laicidade do Estado, exige-a e alimenta-a, estimulando a cidadania participativa de todos os membros da sociedade, a liberdade religiosa e o respeito pelas minorias”.[3] E ainda que a presença da Igreja Católica seja limitada, Ela estará sempre disposta a contribuir “para o crescimento da sociedade, particularmente na sua ação a favor dos mais vulneráveis e dos mais pobres, nas áreas da saúde e da educação e no campo específico da caridade”.[4] Na salutar cooperação e na permuta de bons ofícios, o homem e a sociedade serão sempre os destinatários e os principais beneficiários.
P. José Victorino de Andrade
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[1] RATZINGER, Joseph. Fé, verdade, tolerância. Lisboa: Uceditora, 2007. p. 105-106.
[2] “Pour sa part, la non-confessionnalité de l’État, qui est une non-immixtion du pouvoir civil dans la vie de l’Église et des différentes religions, comme dans la sphère du spirituel, permet que toutes les composantes de la société travaillent ensemble au service de tous et de la communauté nationale” (Ad Galliae Episcopos expleto saeculo a legali separatione Ecclesiarum et Reipublicae in Gallia, 11 février 2005. In: AAS 97 [2005] p. 307 Tradução minha)
[3] PAPA FRANCISCO. Viagem Apostólica à Arménia: Encontro com as autoridades civis e com o corpo diplomático, 24 jun. 2016. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/june/documents/papa-francesco_20160624_armenia-autorita-cd.html
[4] Loc. cit.
Tenho uma certa dificuldade em compreender algumas das palavras do papa francisco e o que nelas parece implícito. Tal acontece decerto por falta de preparaçao da minha parte, lacuna que me deixa meditando em frases como “ a identidade cristã, longe de obstaculizar a sã laicidade do Estado, exige-a e alimenta-a…” ou a prioridade aparentemente dada ao contributo ““para o crescimento da sociedade, particularmente na sua ação a favor dos mais vulneráveis e dos mais pobres, nas áreas da saúde e da educação e no campo específico da caridade”. Talvez compreendesse melhor se a Caridade viesse em primeiro lugar porque dela brotariam as implícitas e legitimas aspiraçoes do papa que serao as de todos os cristaos. Dito assim parece imprimir um estilo mais próprio do chefe do estado do Vaticano do que do sucessor de Pedro. Pessoalmente, embora admire muito o Vaticano e o esplendor histórico de glorificaçao que irradia, de que Francisco tem dado provas de nao ser grande apreciador, daria preferência a um discurso menos político. É certo que no mundo pejado de injustiças e desigualdades em que vivemos todas as chamadas de atençao sao desejáveis. Mas este ’sabor’ de solidariedade, tao utilizado por algumas forças políticas cuja prática está tao distante do enunciado, embora nos chame a atençao para problemas com os quais somos confrontados diariamente através dos media, faz com que sintamos falta da espiritualidade crista que aborda a realidade mundana a partir de Jesus Cristo e nao o contrário. Chegar a uma humanidade que capaz de se elevar às promessas de Cristo exige, creio, uma formaçao mais espiritual e menos sociológica. Aliás, as melhorias que a partir desse tipo de discurso a humanidade tem mostrado sao, infelizmente, muito poucas. Só a Caridade persiste! Apesar de tudo. Escrevo isto com o mais empenhado espírito de comunhao com o actual papa de quem, como sempre, depende o futuro da cristandade católica.
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