Ao longo dos séculos, o homem desenvolveu um conjunto de sinais visíveis que remetem para realidades mais abrangentes e complexas. Um símbolo, simboliza de modo simples e muitas vezes eficaz o simbolizado. Os sinais de trânsito remetem-nos para um possível e adquirido pré-conhecimento do seu significado e para as leis vigentes em matéria de circulação. Um sinal de proibição, por exemplo, adverte alguém para determinados limites. O próprio carro da polícia e autoridades de trânsito, pela vigilância e iminência de se fazer cumprir a lei, se necessário pelo exercício da coercitividade, imposição da legalidade e manutenção da ordem. Caso o individuo não dirija qualquer veículo, nem tenha qualquer conhecimento prévio das leis de trânsito, nem aquele sinal pode constituir para ele qualquer espécie de ofensa, por não saber interpretá-lo ou por não lhe dizer nada, nem a sociedade deve renunciar a ele, por ser extremamente útil e eficaz para aqueles que nos seus caminhos identificam-no e seguem-no. Podem até significar uma circulação do pedestre mais segura, indicando aos veículos que circulam, entre outros, a presença habitual de peões, a proximidade de uma escola, o limite de velocidade, a passagem pedonal. Indiretamente, ainda que o pedestre desconheça o significado ou que não lhe seja imputada qualquer responsabilidade para a observação das regras de circulação das viaturas, aqueles sinais aumentam a segurança e o bem-estar do individuo.
Na sociedade possuímos ainda sinais e símbolos que historicamente nos foram legados e que permanecem válidos, ainda que fora da civilização e época histórica à qual pertenceram. À porta dos tribunais encontramos com muita frequência a deusa Témis, “uma divindade grega por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, […] é representada de olhos vendados e com uma balança na mão. Ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem”.[1] Ainda que tenhamos histórico-social e religiosamente ultrapassado a mitologia greco-romana, a estátua permanece com toda a sua força apelativa e interpretativa, e jamais qualquer cristão ou crente de outra religião, agnóstico ou ateu, se sentiram feridos na sua dignidade ou religiosidade pela presença de semelhante divindade. Também o bastão de Esculápio ou Asclépio, que representa um cajado com uma serpente enrolada permanece hoje como símbolo da medicina, remetendo para uma divindade greco-romana e até para a própria astrologia. É de tal modo aceite que a Organização Mundial da Saúde, em meados do Séc. XX, adotou-o para a sua bandeira. E nem se trata propriamente de uma instituição de carácter religioso, mas inspirou-se a partir de um vasto património simbólico herdado das religiões. Como não lembrar também o Caduceu, com as duas asas e as duas serpentes enroladas num bastão, que remete para Hermes, Deus do lucro e do comércio, utilizado pelos contabilistas entre outros, ou a coruja, como símbolo da sabedoria que remete para a deusa Atena. Muitos são os símbolos que permanecem válidos pois remetem para realidades de profundo e rico significado para a atividade humana e que partiram de uma religião mitológica extinta, mas que há pouco menos de 2000 anos influenciou os impérios conquistados pelos romanos e onde está também presente a cultura grega.
Ora, o crucificado é um símbolo, não só da herança judaico-cristã do Ocidente, mas de um contexto histórico e social onde estamos profundamente enraizados, originário e inspirador, fonte daquilo que conhecemos hoje num grande número de países cristãos que alcança os quatro continentes… Nele estão simbolizados o amor e a generosidade de Deus, um sinal de salvação, inspiração à alteridade, misericórdia e gratuidade, aspetos tão importantes quanto necessários aos nossos dias. Ouvi falar de um juiz que gostava de tê-lo diante dos olhos na sala de audiências, pois significava para ele o inocente injustiçado, condenado sem culpa, e era uma fonte de inspiração para a prudência nas suas decisões. Para o médico, poderá significar a vitória sobre a morte. Para o político, lembrar que os primeiros devem ser os últimos, doarem-se e exercerem o poder como quem serve, princípios evangélicos tão presentes no crucificado. Para o pobre e pecador, um sinal de misericórdia e de perdão. Para o orante, uma orientação religiosa para a elevação da mente até Deus. Para o ignorante ou o incrédulo, não passará de um símbolo, que lhe deu hipótese de ser livre de crer ou não, sem coações ou limitações muitas vezes impostas por outros credos, onde chega por vezes a existir pena de morte para os apóstatas. Mesmo para esses crentes diversos que nos países cristãos se refugiam, é sinal de um amor que sabe acolher e respeitar a diversidade, que lhes estende a mão, sentimentos que não têm origem político-partidária, ideológica ou filantrópica, mas radicalmente cristã. O crucificado é um sinal de salvação, que não remete para as leis dos homens, como os sinais de trânsito, mas para a lei de Deus. É um símbolo que não remete para mitos ou invenções humanas, mas para a história concreta dos homens, um Deus que se fez carne, possui um rosto, interpela a nossa humanidade, divide o nosso tempo cronológico.
Ao longo da História, o crucificado foi elevado no alto dos montes, referência que coroa os pontos mais altos e remete para o acontecimento do alto do Gólgota; foi erigido nos cruzamentos e encruzilhadas para nortear o viajante e levá-lo a uma viagem terrena por bons caminhos, a uma peregrinação orante com a proteção do Céu; foi colocado no alto dos templos religiosos para lembrar o lugar onde se renova de modo incruento o sacrifício da cruz; foi espalhado pelas ruas das cidades, impedindo os duelos dos homens que eram proibidos onde estava uma cruz que eles sabiam respeitar; junto ao crucificado, o homem lembrava-se de não viver somente para as coisas materiais; nas escolas, era uma referência para onde os alunos viravam-se para rezar ou cantar no início e no fim da aula, contribuindo para a disciplina e a compenetração, símbolo de uma herança das escolas e universidades que nasceram com os Mosteiros e as Catedrais, pólos de cultura e ensino. À sombra da cruz colocada em naus e caravelas, em estandartes e bandeiras, povos heróicos e batalhadores desbravaram novos mundos e definiram fronteiras que constituem hoje as nações. O muçulmano vira-se para meca, o cristão para a cruz. Não pode ser que em países de maioria cristã, esse sinal benfazejo, que se confunde com a sua própria história, cultura e religiosidade, seja retirado e velado sistematicamente.
Tal como o exemplo do sinal de trânsito, que excetua os não condutores de veículos mas dá segurança mesmo aos transeuntes, não sendo neutros para o seu bem estar e segurança, também o crucificado pode ser extremamente proveitoso e útil tanto para aqueles que conhecem e professam essa mesma fé, como também para os outros que não têm o conhecimento da salvação em Jesus, nem compartilham a mesma crença, mas valem-se e vivem desses valores e princípios nos países que os acolhem e onde procuram novas oportunidades de vida. Não é para eles um sinal de condenação, mas de liberdade, acolhimento e amor. Ademais, de pluralismo e de respeito. Também um cristão pode visitar respeitosamente uma mesquita, uma sinagoga ou um templo budista, sem achar que aquele espaço ofende a sua Fé, mas numa experiência sem dúvida culturalmente importante e enriquecedora. Não pode ele mesmo estar aberto a essa ideia, da importância dos seus símbolos para aqueles que recebe, mantendo os sinais exteriores que nortearam os princípios da nação onde nasceu e cresceu, com tal prosperidade e segurança que muitos querem ali abrigar-se. Ora, porque o crucificado, que está muito mais enraizado e tem um número de seguidores que constituem em geral uma maioria nos países ocidentais é o mais visado para ser retirado da esfera pública? Ele faz parte da história da humanidade e está tão presente no Alcorão como um profeta rejeitado pelos judeus, como na própria história de Israel acaba por ser um personagem incontornável. Não é exclusivo da nossa história, e como tal, não devemos subtraí-lo como se não fosse uma realidade partilhada. Não retiramos os símbolos da religiosidade pagã, e o Estado dito laico teima mesmo em difundi-los, porque esse mesmo poder temporal teima em retirar somente os crucificados da parede? É laico para acolher a todos, menos um? Um pluralismo sem dúvida singular. Ou um Estado inclusivo que a todos acolhe e apenas exclui Jesus…
P. José Victorino de Andrade
Ler outros artigos sobre os símbolos religiosos e as raízes cristãs clicando nos links.
_____________________
[1]GRIMAL, Pierre. Justiça. In: ______. Dicionário da mitologia grega e romana. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 435. KURY, Mário da Gama. Têmis. In:______. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. p. 372. Disponível no site do Supremo Tribunal Federal do Brasil, em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis
Deixe uma Resposta