O Estado começa a ter uma presença maior na História a partir de meados do século XV o que reflete o declínio do poder que antes estava nas mãos não só do Papa, como também de Reis e Imperadores.[1] “O próprio conceito de Estado nasce assim como uma decidida reação de rutura contra a ordem política cristã medieval”.[2] Consequente e essa mesma época, o protestantismo e o seu esboroar em diferentes denominações contribuirá para que se repensasse o modo como o Estado deveria gerir as diferentes confissões religiosas, embora levasse ainda certo tempo para que se pudesse garantir a liberdade de culto de todos os grupos. Seria necessário intervir para a pacífica convivência das diferentes realidades, sobretudo numa altura em que elas começavam a proliferar e a multiplicar-se, o que levará posteriormente ao pluralismo, até pela necessidade de um Estado não confessional que pudesse receber pacificamente as diferentes confissões.[3] “O conceito de liberdade religiosa encontra-se assim, presente na teoria e na praxis política europeia de forma irredutível, desde a mesma génese do conceito de Estado”.[4]
Hobbes, herdeiro das teorias políticas do tempo, sobretudo a maquiavélica, será da tese de que compete à “imposição da vontade do supremo soberano”[5] a manutenção da paz entre as religiões. Claro que para a paz, a vigorosa coação não estava excluída. É mister considerar e contextualizar o pensamento de Thomas Hobbes na conjuntura sócio-histórico-política no qual o empirista inglês vivia, constituída por um poder confessional, uma religião de Estado, erigida pelo anglicanismo ao separar-se da Igreja Romana. Por isso ele concebe um Estado forte que, para ele, constitui aquilo que mais tarde será apelidado de Estado totalitário,[6] ou seja, a ele compete o controle total e incondicional que permitiria gerir e promover a educação, a ordem, a segurança, a igualdade… O Leviatã seria assim um monstro colossal, que açambarca tudo e todos, instituições e pessoas, com força e poder, uma vez que um outro Leviatã, seja ele outra nação ou até mesmo uma religião, poderia assaltar-lhe e tomar as rédeas do poder caso o encontrasse enfraquecido.[7]
Embora comece a surgir de raiz, com a própria ideia de Estado, a necessidade de harmonizar as várias confissões, a liberdade religiosa, e a possibilidade de se tender ao que mais tarde veio a ser o pluralismo para uma pacífica coexistência das diferentes realidades, até mesmo com o desmembrar do próprio protestantismo em múltiplas outras derivações e igrejas nacionais, surge simultaneamente uma fortíssima tentação de formar o Estado absoluto de Hobbes. Este, longe de gerir e observar à distância a relação e o diálogo entre as confissões cristãs, ordenando-as e pacificando-as, quer açambarcar as realidades. Tornando-se totalitário, transforma-se num monstro colossal, dado à velha tendência de se endeusar e começar a fazer e promover religiões à medida das suas necessidades políticas e ideológicas. Ou metamorfoseando-se em Estado confessional, mais pelo interesse do poder público em controlar a religião, servindo-se dela e perseguindo as demais, do que por questões de coerência e adesão ao seu credo e sobretudo à sua moral. Sombras e luzes sempre presentes na edificação do Estado atual e das democracias pós-modernas.
P. José Victorino de Andrade
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[1] Ver ESPOSITO, Bruno. O direito internacional entre passado e futuro. In: Lumen Veritatis. São Paulo. No. 11, (Abr. – Jun.), 2010. p. 71-94.
[2] “La idea, el concepto mismo del Estado, nace así como una decidida reacción de ruptura contra el orden político cristiano medieval”. (COELLO DE PORTUGAL, José María. La libertad religiosa de los antiguos y la libertad religiosa de los modernos. In: Revista de Derecho UNED, n. 7, 2010. p. 175. Tradução minha).
[3] Cf. MILOT, Micheline. La laicité. Ottawa: Novalis – Université Saint-Paul, 2008.
[4] “El concepto de libertad religiosa se encuentra así presente en la teoría y en la praxis política europea de forma irreductible desde la génesis misma del concepto de Estado”. (COELLO DE PORTUGAL. Op. cit. p. 177. Tradução minha).
[5] “Hobbes’ proposed solution – that religious peace could be achieved through the imposition of the will of a supreme sovereign”. (HARRISON, Peter. Religion and the religions in the English Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 28. Tradução minha).
[6] Cf. HOTTOIS, Gilbert. De la Renaissance à la Postmodernité: Une histoire de la philosophie moderne et contemporaine. 3. ed. Bruxelles: De Boeck Supérieur, 2005.
[7] Loc. cit. Também em FIORIN, José Augusto (org.). O pensamento humano na história da filosofia. Ijuí (RS): Sapiens Editora, 2007.
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