O Laicismo teve raízes profundas que brotaram e ganharam força a partir das revoluções humanista-renascentista, protestante e nos acontecimentos filosóficos e políticos que precederam e sucederam a guilhotina onde pereceram Luís XVI e Maria Antonieta. Embora a doutrina estivesse lá em gérmen, faltava um termo que recebesse em si toda uma carga semântica que diferenciasse aquela forma extremista e totalitária de poder.
Na Igreja, caberia a São Pio X escrever em latim “laicismum” (AAS 02 [1910], p. 663), aparecendo pela primeira vez num documento oficial da Santa Sé, em 1910, tempo em que eram implantadas Repúblicas com perseguições anticlericais mais ou menos acentuadas. Pio XI, empregará o termo com mais estabilidade, por exemplo, na Quas Primas, que institui a festa de Cristo Rei.[1] O Papa Pio XII referiu-se a essa realidade, aludindo a um misterioso inimigo que “quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; por vezes, a autoridade sem a liberdade. É um ‘inimigo’ que se tornou sempre mais concreto, com um prejuízo que agora nos deixa atónitos: Cristo sim, Igreja não. Depois: Deus sim, Cristo não. Finalmente o grito impio: Deus está morto; ou: Deus nunca existiu. E eis a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre fundamentos que nós não hesitamos em atribuir como as principais ameaças que caem sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um direito sem Deus, uma política sem Deus”. (AAS 44 [1952], p. 832).[2] O termo laicismo não aparecerá nesse texto, mas noutra alocução em que alerta para uma cultura “de carácter, de espirito, de alma, não cristã” (ibidem, p. 627).[3] Pio XII sofrera com a 2ª Guerra Mundial, com o nazismo e o comunismo, e teve de enfrentar, nos últimos anos de Pontificado, “os ataques aos princípios cristãos, procedentes do mundo Ocidental, que tratava de estabelecer uma ordem social que – em palavras do Papa – ‘não era cristã nem tão pouco humana”.[4]
O laicismo apresenta-se como uma verdade absoluta, intolerante e militante, que visa que a Igreja e o Estado estejam separados até afetivamente, criando um abismo intransponível, no qual é difícil ou praticamente impossível o estabelecimento de pontes de diálogo e concórdia, uma vez que os seus ideais excludentes não criam espaços para a atuação da Igreja, social ou sacramental. Por isso Milot é levada a diferenciar incisivamente duas tendências opostas, a laicidade e o laicismo, e a caracterizar este último como: “Uma doutrina ou uma ideologia que tende a fazer da laicidade um combate contra as pretensões das Igrejas […] supõe sem qualquer dúvida que a Igreja e o Estado estejam separados, mas segundo uma perspetiva mais conflituosa. O laicismo faz-se ideologia e esposa seguindo a mesma forma do dogmatismo religioso. Encontramo-lo, hoje, no seio de movimentos que militam com o objetivo de apagar todos os símbolos religiosos do espaço público”.[5]
P. José Victorino de Andrade
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[1] “Pestem dicimus aetatis nostrae laicismum, quem vocant, eiusdemque errores et nefarios conatus” (AAS 17 [1925], p. 604).
Ver o artigo: https://aportesdaigreja.com/2017/11/26/como-nasceu-a-solenidade-de-cristo-rei-em-oposicao-ao-laicismo-radical/
[2] “Ha voluto la natura senza la grazia; la ragione senza la fede; la libertà senza l’autorità ; talvolta l’autorità senza la libertà. È un «nemico» divenuto sempre più concreto, con una spregiudicatezza che lascia ancora attoniti: Cristo sì, Chiesa no. Poi: Dio sì, Cristo no. Finalmente il grido empio: Dio è morto; anzi: Dio non è mai stato. Ed ecco il tentativo di edificare la struttura del mondo sopra fondamenti che Noi non esitiamo ad additare come principali responsabili della minaccia che incombe sulla umanità : un’economia senza Dio, un diritto senza Dio, una politica senza Dio (Allocuzione alla Azione Catolica, 12 out 1952. Tradução minha).
[3] “Voi conoscete gli sforzi che si compiono per formare una cultura europea, di carattere, di spirito, di anima, non cristiana” (tradução minha).
[4] “Pío XII tuvo que denunciar también los ataques a los principios cristianos, procedentes del mundo occidental, que trataba de establecer un orden social que —en palabras del papa— ni era cristiano, ni tan siquiera humano’”. PAREDES, Javier; BARRIO, Maximiliano; RAMOS-LISSÓN Domingo; SUÁREZ, Luis. Diccionario de los Papas y Concilios. Barcelona: Ariel. 1998, p. 522. (Tradução minha).
[5] “La définition la plus connue du laïcisme est celle d’une doctrine ou d’une idéologie qui tend à faire de la laïcité un combat contre les prétentions des Églises à régir la vie publique. Le laïcisme suppose sans aucun doute que l’Église et l’État soient séparés, mais selon une perspective plus conflictuelle. Le laïcisme se fait idéologie et épouse souvent la forme même du dogmatisme religieux. On le retrouve aujourd’hui au sein de mouvements militants visant à l’effacement de tout signe religieux de l’espace public” MILOT, Micheline. La laicité. Ottawa: Novalis – Université Saint-Paul, 2008. p. 11 (Tradução minha).
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