John Rawls está entre os filósofos políticos mais conhecidos e influentes dos últimos tempos. Muitos consideram o falecido professor Norte-Americano da Universidade de Harvard como uma das maiores forças do pensamento moral e político laico. Apesar de extremamente cauto nas suas teorias, chegou a sofrer críticas pelo modo vago e confuso de apresentá-las.[1] Habermas tentará ajudá-lo nas suas explicitações dando pistas para aclarar e precisar as suas posições. Incomodado, a resposta levaria mais de um ano a redigir, entre justificações, correções e precisões.[2] O modo com que receberá os reparos, e uma progressiva radicalização das ideias, insere-o entre os liberais mais radicais e inconformados que defendem a tolerância sem muitas vezes vivê-la.
A biografia de Rawls escrita por Pogge revela-nos que ele teve uma juventude próxima da religião, realizando uma tese sobre assuntos religiosos na Igreja norte-americana Episcopal-cristã, onde fez os estudos básicos. Mas a guerra, o mau exemplo de um capelão militar e a morte trágica de amigos, fê-lo questionar Deus e afastar-se da Igreja em 1945.[3] O afastamento da religião seria também pensada para a futura sociedade imaginada por Rawls onde os poderes do Estado deveriam estar acima dos demais. Apesar de concordar com a liberdade das religiões, pelo menos as consideradas decentes,[4] o Estado rawlsiano deve impor as suas políticas em detrimento de quaisquer outros valores incompatíveis, mesmo aqueles defendidos pelas religiões. Esta ideia foi contestada até mesmo por Habermas que lembrou a defesa da vida feita pelos católicos (Habermas & Rawls, 1998)[5]. Mas Rawls considera que até mesmo os valores morais deverão submeter-se aos políticos, passando a identidade moral do individuo a uma ideia de bem artificial, criada por entidades públicas.[6] Para tal, ele atribui um papel moralizador ao Estado, que dentro do pluralismo deverá surgir como referência última, pois os demais estão comprometidos com alguma verdade ou valor que o poder temporal deverá ignorar.
É verdade que Rawls não exclui a participação no Estado liberal de elementos culturais, tradicionais e até mesmo religiosos, mas para ele estes deverão permanecer abaixo das virtudes e dos valores políticos. Como ele mesmo afirma, “têm apenas um papel restrito nas políticas liberais democratas”.[7] Entretanto, reconhece que esse sistema político liberal não garante qualquer bem-estar espiritual,[8] o que significa uma lacuna, um sistema incompleto incapaz de garantir o bem-estar integral da pessoa humana. Ademais, parte da tese do pai do liberalismo, o empirista John Locke, para valorizar a instrução em matéria religiosa, pois o desconhecimento seria a pior e a mais perigosa das hipóteses numa sociedade que passaria a estar condicionada pela ignorância em matéria e escolha religiosa. Rawls partilha ainda convicções com a Doutrina Social da Igreja, mesmo sem a conhecer. Bormann enumera-as: crítica o utilitarismo; defende uma ética alcançada pela razão que sirva a comunidade humana; valoriza cada ser e cada vida humana; preocupa-se com o pluralismo e a justiça social. Semelhanças tais que Bormann exorta a um frutuoso entendimento entre teólogos especialistas na moral social e rawlsianos, apesar das diferenças terminológicas, conceptuais, doutrinárias e práticas.[9]
Como oportunamente sugeria Habermas a Rawls: “em condições de um pluralismo duradouro, a disputa em torno de verdades metafísicas e religiosas permanece aberta”.[10]
Pe. José Victorino de Andrade
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[1] Para uma lista de críticos de Rawls a este respeito, e também à distância das teorias apresentadas pelo autor relativamente à Doutrina Social da Igreja, ver: BORMANN, Franz-Joseph. ¿Qué incoveniente tendría la ‘equidad’? Un punto de vista católico sobre la teoría de la justicia de J. Rawls. Universitas Philosophica, n. 39, pp. 173-198, 2002.
[2] HABERMAS, Jürgen & RAWLS, John. Debate sobre el liberalismo político. Barcelona: Paidós Ibérica, 1998.
[3] POGGE, Thomas. (2007). John Rawls: His life and theory of justice. New York: Oxford University Press.
[4] RAWLS, John. The law of peoples. 2a. ed. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
[5] “Así, algunos católicos partidarios de la prohibición general del mismo [aborto] afirman que para ellos sus convicciones religiosas acerca del valor de la inviolabilidad de la vida son más importantes que cualquier valor político” (HABERMAS & RAWLS, op. cit., p. 169).
[6] RAWLS, John. (1996). Political Liberalism. New York: Columbia University Press.
[7] “Comprehensive doctrines play only a restricted role in liberal democratic politics”. (RAWLS, John. The law of peoples. op. cit., p. 122. Tradução minha).
[8] “Political liberalism is a liberalism of freedom […]. Their spiritual well-being, though, is not guaranteed”. (RAWLS, John. The law of peoples. op. cit., p. 127. Grifo meu).
[9] BORMANN, Franz-Joseph. ¿Qué incoveniente tendría la ‘equidad’? Un punto de vista católico sobre la teoría de la justicia de J. Rawls. Universitas Philosophica, n. 39, pp. 173-198, 2002.
[10] “En condiciones de un pluralismo duradero la disputa entorno a verdades metafísicas y religiosas permanece abierta”. (HABERMAS & RAWLS, op. cit., p. 62.
Ver outras obras usadas para este trabalho:
VICTORINO DE ANDRADE, José. Aportes da Igreja à Construção de uma Sã Laicidade. Medellín: UPB, 2013 (Tese de doutoramento).
RAWLS, John. A Theory of justice. Revised edition. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
RAWLS, John. Justicia como imparcialidad: política, no metafísica. In: Ética del siglo XX: Doce textos fundamentales. 2a. ed. Madrid: Filosofia Alianza. Ed. Carlos Gómez, 2005.
RAWLS, John. Lectures on the History of Political Philosophy. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
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