A fila do supermercado estava consideravelmente grande. Esperava pacientemente ao som dos reincidentes bips do leitor do código de barras provindos da laboriosa agilidade da senhora da caixa. Também aí podemos dar o nosso testemunho e marcar com a nossa presença, por isso não dispenso os sinais religiosos, nem mesmo quando vou às compras. Quando me deparo com gente conhecida, digo em tom de brincadeira que os bens da casa não nos caem do céu. O padre também tem de ir ao supermercado, e esperar na fila… Tenho tido experiências interessantíssimas e encontros fortes com pessoas que perguntam o que têm de fazer para batizar as netas, como escolher os padrinhos, ou simplesmente lembram-se que não vão ao sacramento da reconciliação há algum tempo. Por vezes, encontro-as a entrar timidamente na igreja, provocadas de certa forma por aquele encontro.
Chegou finalmente a minha vez. Enquanto a jovem passava os produtos pela máquina, notei olhares de soslaio para a gola do clergyman. “O senhor é padre?” – inquiriu após carregar no botão e anunciar o total. Respondi afirmativamente enquanto procurava o dinheiro no bolso, e algo mais precioso para a corajosa interlocutora que fez a pergunta: uma medalhinha de Nossa Senhora das Graças. Respeitando a liberdade da jovem, perguntei-lhe se era católica, a fim de não oferecer algo indesejado. Respondeu-me: “Não, eu não sou católica” – e depois de algum tempo, pensativa, com o olhar baixo e um pouco triste, continuou de modo assombroso – “eu não sei o que eu sou… eu acho que não sou nada”. Fiquei em silêncio enquanto pagava… Não estava à espera daquilo. Talvez tivesse palavras para uma simpática picardia com um ateu, ou para dizer que partilhava da mesma Fé bíblica centrada em Cristo a qualquer protestante. Entretanto, fiquei chocado com a resposta. Ela nem sabia o que era. Algo no mundo está a mudar, e penso que as palavras daquela jovem foram sintomáticas.
Paulo VI ensinou-nos a interpretar os sinais dos tempos munidos das Escrituras, e este era sem dúvida um sinal importante. Uma crise existencialista sem precedentes, na qual vegeta-se uma vida desprovida de certezas quanto a uma identidade munida de personalidade e convicções que a fortaleçam. “Eu acho que eu não sou nada”. A incerteza relativamente ao ser não é coerente sequer com a convicção de nada ser. Parece que ficaram para trás ideias filosóficas como a convicção de uma existência alicerçada no pensamento, da busca a partir da experiência empírica e científica, ainda que ela parta da tábua rasa, de um conhecimento ainda que naturalista que nos ilumine, da procura de um consenso na liberdade e no diálogo da sociedade pós-moderna. Nem sei mesmo se é possível enquadrá-lo dentro de um niilismo redutivo ou destrutivo do ser. Entramos numa nova era, de categorias provavelmente desconhecidas.
Kierkegaard parecia discernir para onde caminhávamos ao alertar que, tornando-se a ciência um modo de vida, esse seria o modo mais terrível de viver: encantar todos e extasiar-se com as descobertas e a genialidade, sem, no entanto, o homem conseguir compreender-se. A questão parece aumentar a sua gravidade ao considerarmos que não se trata somente de um problema relativo à auto compreensão, mas de incertezas relativas a uma pertença e a uma identidade, enfim, a um sentido mais profundo para a nossa existência. Seria preciso levar essa pobre senhora à intelecção daquilo que ela faz por detrás de uma caixa registradora, cumprindo horários de trabalho e desgastando-se com o suor do seu rosto para ganhar legítima e honestamente o pão de cada dia, suportando e fortalecendo-se junto d’Aquele que suaviza todo o jugo, à espera do dia que não acaba onde a nossa fome e sede de justiça serão saciadas e no qual todas as lágrimas serão enxugadas.
Talvez a missão do evangelizador, num futuro próximo, senão hoje, seja levar misericordiosamente os homens a um sentido para as suas vidas, como caminho para encontrarem-se consigo e com Cristo, aqui, e na eternidade.
P. José Victorino de Andrade
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