
Na verdade, certa corrente da ética contemporânea levanta uma questão há muito predicada pelo Cristianismo: No relacionamento humano, o homem nunca poderá consistir um meio para outro homem, algo que se usa, mas deve ser considerado um fim.2 Não o fim último, que é o próprio Deus, que deve animar e continuamente purificar esse relacionamento, enquanto raiz e princípio, mas um fim enquanto uma atitude verdadeiramente altruísta, misericordiosa e caritativa. Ora, a Igreja teve desde sempre algo forte e credível a apresentar ao mundo e que se funda no mandamento novo trazido por Nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. Jo 13, 34-35) iluminando e firmando as regras de ouro éticas de todos os tempos. Os autores mais insuspeitos reconhecem-no. Por exemplo, J. B. Bury, entre as várias críticas acirradas ao Catolicismo, atribui aos cristãos a extensão da caridade a todos, uma vez que Sócrates, ao formular “a regra de vida ‘fazei ao outros’, provavelmente não queria incluir entre os ‘outros’ escravos ou selvagens”.3 Ou mesmo Voltaire, ao reconhecer que os “povos que não professavam esta religião romana imitaram, mas apenas de forma imperfeita, caridade tão generosa”.4
Os Papas, e o colégio episcopal em união com eles, sobretudo nestes últimos dois séculos, têm proposto e aplicado os ensinamentos da moral nos seus múltiplos âmbitos, sempre em nome e com a autoridade a eles confiada por Jesus Cristo. Estes ensinamentos, inspirados pelo Espírito Santo, envolvem também questões relativas à vida social, ou mesmo à economia e à política, nunca deixando de exortar à verdade. O Magistério intervém assim para formar consciências e propor valores.5
Ora, entre tantos problemas que afligem a sociedade humana de nossos dias, ensina-nos a Caritas in Veritate, “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral” (n. 51). Esta é a chave de ouro para abrir a porta à solução de múltiplas questões, e está desde sempre nas mãos da Igreja. Entretanto, como em tantas fechaduras duplas, a porta abre-se mais facilmente com o concurso de uma chave de prata. Está nas mãos do Estado, cabendo-lhe também uma palavra. As duas chaves, cooperando, cada uma na sua fechadura, serão capazes de abrir as portas à construção do bem comum e da civilização do amor.
Pe. José Victorino de Andrade
In: Lumen Veritatis n. 13 (adaptado)
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1 ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010, p. 22. (Tradução nossa).
2 Ver estudos de ética não utilitarista ou consequencialista que defendem esta tese, como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética Social: Familia, profesión y ciudadanía. 2. ed. Pamplona:o utilitaristas ou consequencialistasabrielocura do bem comum, proporcionar felicidade para ser feliz, EUNSA, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La Perspectiva de la Moral: Fundamentos de la Ética Filosófica. Madrid: Rialp, 2000, p. 109-115.
3 Ver BURY, J. B. The Idea of Progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 5.
4 Apud WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009, p. 185.
5 Podem-se encontrar estas ideias sobretudo no nº 4 da Veritatis Splendor do Papa João Paulo II (1993). Conforme o Arcebispo Jean-Louis Bruguès na conferência supracitada, “a própria Encíclica visa mostrar o direito do Magistério em intervir em certas questões particulares”.
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