Por ocasião dos 90 anos de Bento XVI

Uma abordagem sintética sobre a pessoa e a obra de Joseph Ratzinger, enquanto homem, intelectual, teólogo, pontífice, entre muitos outros atributos e predicados, é extremamente delicada e complexa, dada a extensa obra e riqueza de pronunciamentos que nos deixa. Poder-se-á, talvez, partir de fragmentos para considerar e intuir o todo, à semelhança de uma abordagem da Teologia da História de Von Balthasar, aliás, aprazível ao Papa emérito que a cita nas suas obras.[1] Traços que permitirão vislumbrar um pouco o grande legado que deixa à Igreja de Cristo a quem sempre serviu com tanta simplicidade e dedicação.

Vida, amor, verdade e teologia são os parâmetros que para Pablo Blanco identificam Bento XVI: “Nele a vida se funde com a busca da verdade e do amor que levam de modo inevitável a Cristo”.[2] E se algo há de notório na reflexão de Ratzinger é esta aproximação de Jesus aos homens, não só tornando-o mais acessível na sua humanidade e realidade histórica, mas também apontando para a visibilidade do seu rosto. Não é um Deus frio e distante, pelo contrário, fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1, 14), semelhante a nós em tudo a não ser no pecado (Hb 4, 15), entra na história concreta dos homens a quem se revela e dirige “palavras de vida eterna” (Jo 6, 68) e quem melhor do que o Filho para dizer quem é o Pai (Mt 11, 27). Esse é o Jesus de Nazaré que encontramos nos seus escritos e palavras.

Também a beleza e a verdade são dois elementos continuamente presentes na elaboração teológica e no pensamento de Ratzinger. A verdade da beleza e a beleza da verdade, para o teólogo alemão, têm a sua referência em Cristo, pois é Ele ao mesmo tempo Verdade (Jo 14, 6) e beleza que salva.[3] Ambas se impõem por si e não são passíveis de esconder debaixo do alqueire (Mt 5, 15) e por isso devem conduzir ao testemunho. Quem contempla e se encontra com Cristo, fato constitutivo do ser cristão (Deus Caritas Est 1), não pode senão comunicar esta experiência.[4]

A flecha da beleza que nos atinge tem sua origem no mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3).[5] Dele provém e para ele atrai. Da mesma forma, também o diálogo está chamado a identificar a verdade que o precede e que deverá ser, ao mesmo tempo, o seu escopo.[6] Entretanto, decorrente de uma cultura que nega a existência de uma verdade válida para todos, com repercussões no campo religioso e da ética, o relativismo é considerado para Joseph Ratzinger um “problema central para a fé do nosso tempo”.[7] Bento XVI reiteradamente alertou para os perigos de uma sociedade que pensa a liberdade como a ausência de qualquer vínculo e que não se coloca debaixo de uma autoridade nem impõe qualquer limite às suas ações.[8]

É em Cristo e na sua Igreja que o homem encontra a verdadeira liberdade, vinculado a uma moral verdadeiramente libertadora da escravidão do pecado, de falsas ideologias messiânicas e da arbitrariedade subjetivista. Ratzinger alertava para a ditadura do relativismo, cuja medida é o próprio eu e a própria vontade e que, portanto, não reconhece nada definitivo e estabeleceu o traçado de uma Igreja anti relativista no sermão da missa Pro Eligendo Pontifíce, contrapondo a esta mentalidade a pessoa de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O Conclave acabaria por elegê-lo como Sumo Pontífice, continuando assim, da cátedra infalível, a reafirmação da verdade válida e vinculativa de Jesus Cristo e da fé da Igreja.

Nas suas encíclicas, dá uma resposta definitiva do Magistério a muitos reptos de pensadores e tendências da atualidade. As suas propostas e argumentações trazem o selo e a autoridade de um Papa que é dos maiores teólogos e filósofos que a Igreja teve nestes últimos tempos. Na Deus Caritas Est distingue e precisa o verdadeiro amor de falsas ou erróneas conceções, além de surpreender aqueles que lhe imputavam erroneamente a frieza de um panzerkardinal, a Spe Salvi constitui um lindíssimo tratado de espiritualidade capaz de dar ao homem cansado e desnorteado de hoje um novo alento, e a Caritas in Veritate precisa a ação social da Igreja sobre um novo eixo, que a distingue de filantropias, ONGs, ou da concepção de uma Igreja apenas caridade, sem a verdade e exigência evangélica a Ela inerentes.

Esperança e caridade tinham sido abordadas. Faltava algo sobre a fé, que encerrasse o círculo das virtudes teologais. Estas, conforme o catecismo que ajudou a elaborar, dispõem os homens à relação com a Trindade e a proceder como cristãos (CEC 1812-1813). Temas, aliás, que seriam caros e repetidos por Bento XVI. A proclamação do Ano da Fé e a elaboração da Encíclica Lumen Fidei em estreita colaboração com Francisco, encerraram com chave de ouro um pontificado surpreendente, em todos os sentidos – até mesmo na renúncia – e que provavelmente oferecerá muitos anos de estudo e aprofundamento filosófico e teológico. Certamente, o seu pensamento e a sua simplicidade ainda farão correr muitos rios de tinta. Seja esse um manancial que, à semelhança das virtudes teologais, conduza sempre a Deus.

Pe. José Victorino de Andrade

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[1] RATZINGER, Joseph. Elementi di teologia fondamentale. Brescia: Morcelliana, 2005, p. 117.

[2] “En él la vida se funde con la búsqueda de la verdad y del amor que llevan de modo inevitable a Cristo” (tradução nossa). BLANCO, Pablo. Joseph Ratzinger: Vida y Teología. Madrid: Rialp, 2006, p. 20.

[3] Quanto à beleza, encontra-se um excelente texto sobre o pensamento de Bento XVI em RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006.

[4] O paradigma do testemunho da verdade e a missão enquanto imposições não de uma religião particular ou de uma cultura arrogante que se julga superior, mas de algo que se impõe por si, e que é Cristo, encontra-se em RATZINGER, Joseph. Fé Verdade Tolerância. Lisboa: UCP, 2007.

[5] Idem.

[6] Sobre o diálogo e a verdade, ver a informal conversa entre Habermas e Ratzinger no final do encontro de ambos na Academia Católica da Baviera, no dia 19 de Janeiro 2004, que se encontra no prefácio da tradução espanhola: HABERMAS, Jürgen y RATZINGER, Joseph. Dialéctica de la secularización. Madrid: Encuentro, 2006.

[7] RATZINGER, Joseph. Fé Verdade Tolerância. Lisboa: UCP, 2007, p. 107.

[8] Um excelente texto sobre Igreja e Política, onde este assunto é abordado, encontra-se no terceiro capítulo da obra RATZINGER, Joseph. Iglesia, ecumenismo y política. Madrid: BAC, 2005.

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