O filósofo francês René Descartes, físico, matemático e deísta, propôs algumas vias para demonstrar a existência de Deus paralelamente a qualquer contexto institucional ou credo. Apesar dos interessantes e até didáticos argumentos, numerosos críticos consideram até hoje muito superior e mais consistente o revolucionário método científico que coloca em cheque, com as suas dúvidas sistemáticas, as próprias evidências da existência de Deus.[1] O pensamento cartesiano foi capaz de colocar em contradição as suas próprias teses. Este é também o problema de outros autores hoje, entre eles o filósofo e político italiano Gianni Vattimo, que ao desvalorizar e esvaziar conceptualmente a possibilidade da existência da Verdade, verá o próprio argumento derrapar nas suas premissas e comprometer as conclusões. Sem a verdade, resta-nos a mentira e a falsidade, a dúvida e o relativismo, o subjetivismo e o individualismo. E o descrédito do filósofo político… Façamos uma análise da sua obra Adeus à Verdade,[2] para depois a iluminarmos um pouco à luz da d’Aquele que é a Verdade.
Gianteresio (Gianni) Vattimo, um dos expoentes do pós-modernismo europeu, parece incomodar-se particularmente com a possibilidade da verdade. Por muito leviana que possa ser a leitura da sua obra deparamo-nos com contradições, becos sem saída, utopias e justificações de uma realidade deturpada e desmesurada por ideologias e um forte amor-próprio, que lhe tira o carácter idóneo e imparcial para as críticas a que se propõe. A tendência para afirmar que a verdade não existe, ou nem devia existir, dogmatiza o próprio argumento, que fica comprometido desde o início. Partindo do princípio presente na sua publicação original Addio alla Verità, de que a verdade não deve ser reivindicada por nenhuma pessoa ou instituição, sob o risco de pretender subjugar aquele que não pensa da mesma forma,[3] o filósofo italiano desmascara uma pretensão que lhe é própria. Crítico da Igreja, por não ser capaz de uma caridade sem a verdade, ele assume uma identidade cristã, herdada, tal como tantos outros dentro da cultura à qual se dirige, e que pretende recriá-la de acordo com o seu próprio pensamento e a sua existência. Esta inversão de valores do geral para o seu particular consiste, pelo menos, em faltar à caridade…não só com os outros, mas também consigo mesmo. Obviamente que uma ética que acompanhe este estado de coisas deve estar sujeita à caridade tal como é concebida por Vattimo e que para ele seria a autêntica mensagem de Jesus. Segundo ele, seria necessário prescindir de qualquer discurso baseado na natureza humana, no absoluto e, mais uma vez, na verdade.[4]
O problema é que o Jesus de Vattimo está desligado de um Deus cujos vestígios encontramos na ordem da criação, que não se faz presente na eucaristia pela transubstanciação, e cuja sua mensagem é mitológica.[5] Da mesma forma que a Bíblia não deve ser considerada um manual de astronomia, para ele, tampouco deveria estar incluída entre os tratados de antropologia, de moral ou mesmo de teologia.[6] O Jesus de Vattimo não é dogmático nem metafísico,[7] é apenas caridade sem verdade, compreensível e tolerante com a nossa natureza, sem qualquer condicionante.[8] Definitivamente, o Jesus de Vattimo, não é Jesus de Nazaré. O Jesus de Vattimo é de mentira, Jesus de Nazaré é a Verdade; o Jesus de Vattimo é mítico, Jesus de Nazaré é o Verbo de Deus encarnado, presença e salvação na História concreta dos homens; o Jesus de Vattimo está desfigurado, em Jesus de Nazaré contemplamos o mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3), a face de Deus. E, para nos encontrarmos autenticamente com Cristo, Caminho Verdade e Vida, Deus quis a sua Igreja.[9]
Para quem pretende despedir a verdade e engendrar o seu próprio jesus, não é difícil recorrer a argumentos falaciosos para tentar desformosear a esposa mística de Cristo, ainda que para isso condene algo que ele parece conhecer muito bem, ou não fossem certas expressões que denotam certo domínio da mensagem e presença da Igreja no mundo de hoje. Como um furacão que destrói tudo à sua passagem, indiscriminada e irracionalmente, assim são as intolerantes acusações de Vattimo à Igreja, sopradas por uma profunda indignação pelo seu modo de ser e estar no mundo, inclusive distante da moral cristã. Uma vez que ele não é coerente com a formação religiosa recebida, cabe impor à Igreja uma incoerência que se configure a ele. Há que esmagar a infame, e amar quem nos proclama uma contraverdade,[10] frase de Voltaire e que o seu adepto Vattimo, considendo-o modelo de cristão,[11] bem poderia parafrasear. “É necessário mentir como um diabo […] Menti, meus amigos, menti”,[12] incentivava o filósofo iluminista francês na sua carta a M. Thieriot.
Costuma-se dizer que o último na ação é um bom número de vezes o primeiro na intenção. No fim de um segundo confuso capítulo dedicado a um tiroteio em todas as direções da Igreja e da sua influência na sociedade, Vattimo abre o jogo e denuncia a sua intenção: a conversão do cristianismo numa religião de caridade, prescindindo da verdade, do dogma, numa abertura a todas as mitologias de acordo com certa hermenêutica da mensagem de Cristo sem as exigências morais que a acompanham.[13] Para suportar as suas exigências, cita mesmo a utópica e mal enfocada época do Espírito, imaginada pelo abade místico cisterciense Joaquín di Fiore, aplicando-a aos nossos dias, a fim de que a nossa época pudesse viver a sua religiosidade “em forma de caridade que já não dependa da verdade”.[14]
Encontramos nas argumentações de Gianni Vattimo uma vontade enorme de descredibilizar e macular a verdade, de relativizá-la, obnubilá-la, apagá-la da vida concreta dos homens como se fosse uma invenção nossa, um acaso da história, construção de seres racionais que a exprimiram para satisfazer anseios específicos e peculiares de uma determinada cultura. No mundo de hoje, ele não reserva lugar para a verdade. Como se fosse possível tal fenômeno. Porque este anseio mais profundo do filósofo político parece ser irrealizável? A resposta é simples, toca no absoluto, numa pessoa concreta, e na sua mensagem querigmática e soteriológica. Jesus Cristo. Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD 11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.). Apenas a Revelação pode trazer uma verdade plena que oriente os homens na sua peregrinação terrena e os leve a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.
A Caritas in Veritate publicada em 2009, no mesmo ano da obra Addio alla Veritá, traria uma forte resposta do Magistério. A Caridade na Verdade de Bento XVI prevaleceria nos meios mediáticos e na superioridade da doutrina, a Verdade triunfou sobra a mentira…
Salmo 43
1Faz-me justiça, ó Deus,
e defende a minha causa contra a gente sem piedade!
Livra-me do homem mentiroso e perverso.
2Tu, ó Deus, és o meu refúgio. Porque me rejeitaste?
Porque hei-de andar triste sob a opressão do inimigo?
3Envia a tua luz e a tua verdade,
para que elas me guiem e conduzam
à tua montanha santa, à tua morada.
Pe. José Victorino de Andrade
Adaptação de um Paper realizado para a Universidade Pontifícia Bolivariana no âmbito do mestrado (Licenciatura Canónica) em Teologia com ênfase em moral.
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[1] Ver, por exemplo, o belga HOTTOIS, Gilbert. História da filosofia: da renascença à pós-modernidade. Lisboa: Piaget, 2003. 521p.
[2] Li a obra na tradução da língua de Cervantes (nota 3). Original Addio alla Veritá publicado pela Meltemi em 2009.
[3] Cf. VATTIMO, Gianni. Adiós a la verdad. Barcelona: Gedisa, 2010. p. 92.
[4] Cf. Ibid. p. 72.
[5] Cf. Ibid. p. 77.
[6] Cf. Ibid. p. 98.
[7] Cf. Ibid. p. 100.
[8] Cf. Ibid. p. 93-94.
[9] Cf. JOÃO PAULO II. Veritatis Splendor: Carta Encíclica. 4a. ed. São Paulo: Loyola, 1997. p. 12.
[10] “Écrasez l’infâme, et aimez qui vous aime”. Lettre de Voltaire en Novembre de 1768 au encyclopédiste Jean le Rond d’Alembert apud Lejeune, Anthony. The concise dictionary of foreign quotations. London: Stacey, 1998. p. 111.
[11] Vattimo elogia Voltaire, colocando-o inclusive como modelo de cristão. Ver, por exemplo, VATTIMO, Gianni. Adiós a la verdad. Op. cit., p. 100.
[12] “Le mensonge n’est un vice que quand il fait du mal; c’est une très-grande vertu quand il fait du bien. Soyez donc plus vertueux que jamais. Il faut mentir comme un diable, non pas timidement, non pas pour un temps, mais hardiment et toujours. […] Mentez, mes amis, mentez ; je vous le rendrai dans l’occasion”. (VOLTAIRE. Œuvres completes. Garnier tome 34, djvu/163. Lette 666, anné 1736 – 21 octobre, p. 153. Grifo meu).
[13] Cf. Ibid. p. 100.
[14] Ibid. p. 75.
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