A paz é fruto do empenho de todos: dos políticos, dos juristas, dos educadores, dos economistas, de todos os homens e mulheres de boa vontade. De modo particular os juristas, e sobretudo os católicos, estão chamados a dedicar-se ao serviço da sociedade dos homens para a construção de um grau superior de ordenamento internacional que é desde já uma exigência que não pode mais esperar, se não a preço de consequentes catástrofes. Impõe-se, assim, uma evolução do direito internacional. Para que isto se realize não basta uma simples observância da justiça e do direito; todos intuem que se exige muito mais, que é necessário um suplemento de caridade com que revitalizar-se e tornar mais humano o direito e a justiça. A Revelação o admoesta e o Magistério da Igreja Católica não perde ocasião de recordar que ou o empenho pelo direito e a justiça nascem da paixão pelo homem educado como filho de Deus e irmão nosso, sem excluir nenhum, ou não levará a nada.
Em concreto, em qual direção ocorre mover-se para sair da atual situação de estalo e perigo na qual se encontra a Comunidade internacional? À luz dos ensinamentos Pontifícios e recuperando a profética intuição de Francisco de Vitória, é indispensável trabalhar para criar uma nova mentalidade que pensa e se empenha para um mundo tomado como sociedade universal dos povos, politicamente organizados, que vivem e colaboram juntos sobre a base de um real princípio de igualdade, que tem seu fundamento na comum dignidade humana. Na comunidade internacional as três fundamentais funções (legislativa, executiva e judiciária), estão descentralizadas. Por outras palavras, as três fundamentais funções de produção de normas jurídicas, de acertamento e atuação do seu direito, não são levadas para determinados órgãos aos quais concerne a última responsabilidade. As normas que o disciplinam não são produto do legislador, assim como vem nos ordenamentos internos, mas são determinação da conduta e da vontade dos sujeitos que compõem a Comunidade internacional, ao mesmo tempo, legisladores e destinatários das normas. Sobretudo, quase inexistente e sempre frágil é a averiguação das eventuais violações, frequentemente condicionada por interesses políticos e econômicos dos Estados mais poderosos[1]. Hoje se dão conta que semelhante sistema não está em condições de resolver positivamente os enormes problemas de fronte aos quais se encontra a humanidade e assim agindo não se chegará a lado algum. Aquela que desde sempre foi considerada uma específica peculiaridade do ordenamento internacional se está, assim, revelando um perigoso laço que chegará a provocar a sufocação de todo o sistema. A atual conjuntura histórica impõe a todos, mas em particular àqueles que têm em mãos o bem das nações, de ser audazes e sair dos estéreis particularismos, fortalecidos pela convicção de que não há alternativa: ou se excogitará um sistema alternativo que levará a um novo sistema jurídico internacional ou se agravarão sempre mais tantas emergências que pululam neste nosso tempo: direitos humanos, guerra, fome, ecologia, etc.
Concretamente, pensamos que estão maduros os tempos para iniciar um processo de reflexão que leve quanto antes a uma espécie de refundição da “Organização das Nações Unidas (cf Centesimus annus, n. 21) através de uma espécie de Assembleia Constituinte em que estejam representadas todas as Nações da Terra no respeito do princípio de igualdade, mas também tendo em conta outros critérios que rendam justiça à identidade e ao empenho de cada um, evitando assim cair em uma ideologia qualquer e realizando uma verdadeira igualdade fundamental. A razão principal de tal Assembleia deveria ser aquela de distinguir o âmbito de competência dos ordenamentos estaduais, respeitando a sua soberania interna e independência externa, daquela própria ao ordenamento internacional que poderia determinar-se de modo claro e detalhado aplicando analógicamente a Regula Iuris XXIX “Quod omnes tangit debet ab omnibus approbari“. Por exemplo, sendo a paz um bem de todos, a disciplina de sua manutenção ou da sanção de sua violação, deveria ser matéria subtraída aos Estados singularmente, para tornar-se objeto de produção legislativa de um órgão específico reconhecido a nível internacional. Igualmente deveria haver órgãos executivos e judiciários fornecidos pelo mesmíssimo poder no exercício da própria função. Deste modo ter-se-ia o respeito pela soberania e pela independência dos singulares sujeitos da Comunidade internacional, não de maneira absoluta, mas relativa ao bem comum da mesma Comunidade. Esta, uma vez estabelecida a própria área de competência, teria a possibilidade de operar através das funções de seu ordenamento jurídico, agora de modo centralizado. Pensamos que esta seria a ideia profética para aqueles tempos, de Francisco de Vitória, e que, à luz desta sua intuição, poderia ser a estrada para concretizá-la. Damo-nos conta que tal proposta, aqui apenas esboçada em suas linhas principais, deve ser aperfeiçoada, mas parece importante apresentá-la, na esperança que possa tornar-se base de reflexão e confronto entre os diversos estudiosos.
De nossa análise emerge também que, comumente, embora na realidade não seja exatamente assim, se atribui a paternidade do moderno direito internacional a U. Grozio, que no século XVII pensou um direito fundamentado sobre a mera razão, vista como terreno de encontro entre os homens, em oposição a toda a referência transcendente e confessional, para ele fonte de conflito: Deus divide os homens e os leva ao ódio recíproco, enquanto a razão une. Ora, o homem moderno e contemporâneo acreditou e continua a querer acreditar nesta falsidade, mas o senso da vida, das relações sociais, do destino após a morte, dos valores como o amor, a fraternidade e a solidariedade são demandas que concernem essencialmente os valores religiosos. Deste modo, apenas o reconhecimento da parte do homem de seu ser enquanto criatura, e da existência de um Criador, que é Pai de todos, pode motivar e fazer esperar um mundo melhor.
O célebre escritor Péguy redigiu que a verdadeira revolução ou será moral ou não será uma verdadeira revolução. Hoje poderemos afirmar que a verdadeira mudança do mundo poderá dar-se através apenas de uma “revolução” espiritual, que não é outra senão a conversão dos corações. Só esta levará a sentirem-se membros de uma única família humana e a viver com espírito de fraternidade o nosso ser viatores em vista de alcançar a comum e definitiva pátria, evitando ceder às sugestões do poder, da superioridade nos confrontos com o próximo, da posse e do nacionalismo, que facilmente se traduz em expansionismo que visa tornar os outros dependentes em relação a si. De fato, não devemos jamais esquecer que a nossa vida é uma peregrinação e o homem que julga doce a sua pátria não é senão um tenro principiante; aquele para quem toda a terra é como uma pátria, este já está no bom caminho; mas é perfeito somente aquele para quem toda a terra não é senão um país estrangeiro[2].
Para muitos, sobretudo para a maior parte dos internacionalistas, tudo isto parecerá utópico, fora da realidade, manifestação de perigosa ingenuidade, mas também eles devem reconhecer que esta passagem é em nossos tempos mais que nunca vital. O direito internacional está hoje chamado a dar um salto qualitativo e terá de se saber meter verdadeiramente ao serviço da família das Nações, realizando a justiça e favorecendo assim o bem comum e a paz. O princípio de realidade, mais que o princípio de efetividade aplicado há séculos nas relações internacionais e em cujo nome têm sido sacrificados valores como a justiça e a paz (cf Discorso al Corpo Diplomatico 1995, n. 4), impõe que a norma e institutos jurídicos favoreçam as relações internacionais em ordem à realização de uma pacífica convivência e não vice-versa, isto é, que se mantenham regras-chave que de fato o impedem sendo essencialmente injustas. Os sinais dos tempos nos quais vivemos manifestam-se de modo inequívoco (cf Mt 16, 3), admoestam que é tempo de empregar sinais concretos a fim de permitir uma duradoura solução aos difíceis problemas que estamos vivendo. Um destes sinais pode ser dado verdadeiramente através da evolução indicada pelo direito da Comunidade internacional. Se o direito internacional manchar este compromisso com a História, perderá inevitavelmente a sua própria razão de ser e manifestando a sua inutilidade será posto de lado ou condenado a desempenhar um papel de todo marginal e insignificante. Assim esta passagem realizar-se-á atendendo ao contributo de todos os homens e mulheres de boa vontade, em particular dos cristãos (cf Discorso al Corpo Diplomatico 2004, n. 4), mas sobretudo dos políticos e dos juristas católicos. A fé que os ilumina permitir-lhes-á colocarem-se à escuta do Senhor que anuncia a paz, e empenharem-se nesta obra de refundação do direito internacional, na certeza de que um dia “Misericórdia e verdade se encontrarão, justiça e paz se abraçarão” (Salmo 85).
Artigo cedido pelo Pe. Bruno Esposito, O.P. para a Lumen Veritatis, n. 11, abr.-jun. 2010 adaptado e traduzido pelo então secretário de publicações Pe. José Victorino de Andrade, com revisão final do autor.
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[1] Veja-se recentemente a ideia imposta de “guerra preventiva” que não é outra que um verdadeiro e próprio absurdo jurídico, cuja simples proposta de inserção em um ordenamento jurídico interno, no contexto da legítima defesa, teria sido objeto de irrisão. Não tendo em conta que relevando-se infundada a ameaça, como se ressarcirá o interessado contra o qual aplicamos o princípio, sobretudo, se tiver sido destruído ou invadido?
[2] “Delicatus ille est adhuc cui patria dulcis est; fortis autem iam, cui omne solum patria est; perfectus vero, cui mundus totus exilium est” (Hugo de Sancto Victore, Didascalicon de studio legendi, 1.3, nell’edizione Ch. H. Buttimer 1939, p. 69).
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